Sala de Ruth
Trinta anos
em 2015 correspondem exatamente a quinze anos do segundo milénio mais quinze
anos do terceiro. As diferenças entre milénios são maiores e mais óbvias do que
entre outras charneiras, como as dos séculos, e o período de transição mais
lento, com dúvidas e incertezas pressentidas.
Perante as
incertezas dos mundos resta-nos apenas a preservação do saber. Este processo de
passagem de um ciclo para o outro corresponde ao enquadramento que justifica a
abrangência da coleção e do colecionador, assunto que se foi tornando um fio
condutor para uma comemoração, os trinta anos de existência da Casa das Artes
de Tavira. O acto de colecionar corresponde à salvaguarda do conhecimento com o
objetivo da sobrevivência tanto no momento presente como no futuro. Torna-se a
substância que salva Próspero (William
Shakespeare) na ilha para onde é desterrado, é o injustificável desejo de posse
que justifica a vida de Il Cavaliere (Amante do Vesúvio de Susan Santog), é a
vivência do quotidiano mostrada na galeria Nelly Hamand (Frieza Master,
novembro de 2014), é a hipótese de se fazer um mundo a partir de reflexos, de introspeções,
de debates.
No espaço da
Casa das Artes de Tavira desvenda-se uma sala de trabalho, uma sala de estar e de
receber amigos, que reconstrói uma pertencente a uma colecionadora de origem
holandesa e atualmente residente em Tavira. Um espaço que propicia conversas iniciadas
e sempre inacabadas, um espaço de intimidades, solitário ou em grupo, um espaço
de escrita, de audição e de contemplação.
Para além de
livros, fotografias de memórias, flyers, posters
e postais de viagens, e de um mobiliário muito ocasional, desvenda-se este
espaço como uma coleção de arte, composta por pintura, desenho, gravura, escultura,
fotografia e vídeo, que espelha grande fluência e proximidade à arte e aos
artistas portugueses, apaixonadamente constituída ao longo dos últimos trinta
anos. As obras foram-se instalando progressivamente por todos os cantos da
sala, por vezes profusamente, deixando perceber a sensibilidade do espirito que
vê na arte um objeto fundamental para a descoberta de outros mundos. Esta
coleção será obviamente a razão que justifica a sua existência como pessoa e o
seu contributo primordial para a expansão do sentido de humanidade.
A ambiguidade
e a dúvida sobre a veracidade do que se expõe geram inquietações no observador que
o remetem para a sua própria condição de colecionador, seja do que assunto for.
Colecionar é
diferente de colecionar a arte contemporânea de nós mesmos. Este segundo modo
exige audácia igual à dos artistas porque, através da escolha e da seleção
sempre incerta mas com pressupostos muito próprios, os colecionadores arrojam-se
a definirem arte. Foi assim que Ruth constituiu uma extensa coleção que para
além da acuidade, do estudo e da investigação, revela uma cumplicidade cultural
com o lugar que escolheu ou elegeu para viver e residir e com todos os que
durante estes trinta anos passaram perto de si.
Quem é o colecionador? / Who is
the collector?
"A Ruth
nasceu em Volendam, na Holanda, em 1953.
Completou
com distinção o Curso Superior de Piano no Conservatório de Amesterdão em 1974.
Casou com um
artista plástico, exilado politico, natural de Tavira para onde vieram viver em
1975 e de quem se divorciou em 1984.
Desde 1980
que é professora de música no Conservatório de Faro, realizando em simultâneo uma
carreira musical internacional em diversos concertos.
Ruth
frequenta assiduamente a Casa das Artes desde 1985 participando ativamente nas
atividades desta «casa», como artista, como professora, como visita e como
colecionadora
Ao longo
destes 30 anos a Ruth reuniu um interessante acervo de fotografia, desenho,
pintura, gravura e escultura com as quais habita numa casa do barrocal algarvio.
É uma parte dessa casa, a sua sala de estar e receber, e uma parte desse
acervo, que agora e aqui se reconstroem e expõem.
A Sala / The Room
A sua casa é
lugar de encontro de muitos amigos, sobretudo nas noites quentes de verão,
depois do jantar e de intenso dia de calor e praia. Pela sua casa passaram
durante os anos oitenta muitos artistas à procura de alternativas culturais
sustentáveis com a sua visão de mundo. O fascínio pela descoberta de um país carente
de dinâmicas culturais e artísticas e a possibilidade de poder participar no
seu crescimento cultural foram as causas principais que estimularam a sua
aproximação a Tavira.
Mas Ruth hoje
não está em casa. Deixou a casa com os seus amigos e convidados e retirou-se
rapidamente. Um lenço em cima da cadeira, uma partitura esquecida, um livro aberto
e um lápis por perto.
Onde terá
ido?
A sala umas
vezes está cheia, outras aparentemente vazia, repleta de arte.
Parece que
ainda estão a jantar, mas a sala aguarda-os…
É de noite …
muito tarde. Noite de verão em Tavira, o mais aprazível sítio do mundo. Onde
dia e noite são o mesmo. Foi isso que a reteve e sabe por isso mesmo que é indiferente
a sua presença. Está sempre presente mesmo quando está ausente.
Ao longo da
sua vida, ligada às atividades musicais e culturais, esteve próxima das artes
plásticas adquirindo trabalhos, sem o elementar intuito de os comercializar,
mas acima de tudo com o desejo de os usufruir esteticamente, de ser cúmplice e
estar por dentro das descobertas dos outros, encontrando soluções gloriosas
para a pequenez dos quotidianos.
Ciente que
as coisas da arte e da estética servem para ativar consciências, a sala de Ruth
recriada na CAT, povoada com obras de artistas que conheceu e com quem conviveu,
Ana Hatherly, Bartolomeu Cid do Santos, Catarina Botelho, Costa Pinheiro, Fernanda
Fragateiro, Isabel Sabino, Ivo, João Hogan, João Onofre, Jorge Martins, Jorge
Pinheiro, Jorge Vieira, José Faria, Julião Sarmento, Júlio Pomar, Manuel
Batista, Manuel João Vieira, Margarida Palma, João Vieira, Miguel Proença, Nuno
Calvet, Paula Rego, Pedro Cabrita Reis, Pedro Calapez, Pedro Proença, René
Bertholo, Samuel Rama, Susana Themlitz, Vespeira e Xana, representa o refúgio,
a núcleo da casa, o seu habitat, onde se religam a vida comum e com a vida em
si.
Ilídio Salteiro, 2015
Morada: Rua João Vaz Corte Real,
96, 8800-351 Tavira
Horário: 21h30 – 00h30,
Inaugurações às 22h
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