08/09/2019

Dez palavras para catorze pinturas (Fundación Casa Pintada, Mula, Murcia)


     
       Ilídio Salteiro, 2019. Óleo sobre papel, 150 cm x 200 cm.


Dez palavras para catorze pinturas
Ilídio Salteiro, Lisboa, 2019.

1 _ tecnologia
A prática da Pintura não é uma demonstração de habilidades. Não é uma tecnologia. Porque para além da sua tecnologia, da sua forma, há outras coisas que transformam aquilo que se vê, em arte.
É verdade que todos sabemos disso! Mas então, se a Pintura não é tecnologia, o que é a Pintura?

2_ poesia
A pintura é poesia silenciosa, enquanto a poesia é pintura que fala.
Foi Simonides de Keos que escreveu esta epígrafe no século VI a.C.
Sim, é verdade! Entendemos a Pintura como Poesia. E, possivelmente, todos concordamos isso!

3_ ciência
Mas também vejo a Pintura como uma pesquisa, e o pintor / artista como um cientista.
Cientista porque os seus enfoques, os seus objetivos, são investigar sobre o mundo, sobre a vida, a natureza, o sentido das coisas, o sentido da natureza e da humanidade. O pintor, como o cientista, faz perguntas, pensando na imensidão das coisas que acontecem em seu redor. As respostas a estas perguntas constituem o seu trabalho nuclear, a sua missão. Investigá-las é o trabalho de ambos, artista e cientista, cada um com as suas matérias, analisadas através das lâminas de um microscópio, como metáfora do processo artístico de ambos. Só depois veremos a Pintura tornar-se Arte, com as causas e os assuntos que nos ajudam a caminhar sobre outras realidades, outros pensamentos e outros paradigmas.

4_expressão
Vemos a Arte como nos vemos a nós próprios.
Vemos a Pintura assim como todas as artes, exigindo que cada pessoa, ou que cada artista, faça o seu próprio trabalho com a verdade do seu próprio pensamento, com a realidade da sua experiência de vida. Cada um de nós é muito pequeno, mas também é um centro do mundo com capacidade e energia para fazer coisas transcendentes nunca vistas. Coisas que só acontecem às vezes!

5_formação
Depois da escola de arte em Lisboa, na década de 80, deixámo-nos envolver pelo espaço e pelas coisas que o homem constrói sobre ele. Paisagens com intervenções humanas! Deixámo-nos fascinar pelos espaços com arquiteturas populares ou eruditas, sagradas ou profanas e sempre numa relação com a natureza. Na base disto estão alguns textos de Mircea Eliade[1] entre os quais o que escreveu no Tratado da História das Religiões, no capítulo X, sobre Espaços Sagrados.

6_arte
A obra resulta de várias perguntas, universais e certamente partilhadas por muitos outros artistas. Algumas dessas perguntas são: Onde é o nosso lugar?[2] O que faço e devo fazer aqui, no espaço-tempo que vivo? O que é que a obra pode fazer, só, depois de mim? Contribuir para outro mundo? Melhor ou pior?
As respostas foram muitas, uma após a outra, desde o início do nosso processo artístico nos anos 70.
Os únicos meios que usamos, para responder a estas perguntas, são os ancestrais meios da pintura: papel, madeira, pigmentos, óleos, acrílicos, águas.
O modo tem sido fazer pintura, como quem preparar substâncias para as colocar entre as duas lâminas de um microscópio com o objetivo de serem analisadas.
Artista como cientista, investigando, persistentemente, na oficina, no ateliê ou no laboratório. Experimentando vezes sem fim, procurando continuamente essas respostas, múltiplas vezes, repetidamente.

7_Não me interesse
Porque não nos perspetivamos nos mercados de arte e nas suas complexidades. Não mos interessa a arte como entretenimento, diversão, terapia ou passatempo. Também não nos interessa a prática artística como moda ou poder.

8_Ideologia
Entendo a produção artística como o resultado do pensamento ideológico envolvido nas respostas, de caracter estético e plástico, que fomos dando desde o inico do nosso percurso artístico. Um pensamento ideológico que se confronta com os diferentes modos de estarmos no tempo presente, e com inevitáveis implicações políticas e sociais, muito óbvias. Tem sido sobre estas implicações que temos feito incidir a nossa investigação em arte. Uma investigação, iniciada no século XXI, com uma marca estrutural como lema: O centro do Mundo é aqui!
O assunto tem sido o Apocalipse!
O Apocalipse é o assunto da atualidade, anunciado todos os dias, pelas notícias dos media, pelo conhecimento novo produzido pela investigação através de acontecimentos que têm em comum a ciência, a guerra, a política e mais especificamente o ambiente, a ética, a saúde ou a economia.
Perante todos estes apocalipses anunciados, que posição podemos tomar?
E só temos duas posições: por um lado, privilegiar o pensamento e as coisas do efêmero, fazendo «obra» para agora, para as instituições e os diferentes poderes, acreditando que nada existe, nem antes nem depois de nós próprios e, consequentemente, seguir em frente. Mas, por outro lado, podemos privilegiar a «obra» e a vida como pensamento perene, acreditando na arte como uma possibilidade para construir as indispensáveis hierofanias do presente capazes de nos desvendarem futuros ou soluções.

9_doze pinturas sobre papel
Acerca das doze pinturas que expomos em Mula sob a curadoria de Juan Sandoval e Olga Pomares, podemos afirmar que foram construídas, refletindo sobre um pequeno texto medieval, que narra visão do paraíso ou seja, da visão de um espaço especial, hipoteticamente perfeito e definidor absoluto daquilo que somos e que carecemos: vida eterna e saúde. Este texto, em latim, corresponde à narrativa da viagem de Trezenzonio[3], eremita e monge que, depois de uma visão no cimo da Torre de Hercules, partiu no seu barco atá essa Grande Ilha do Solstício (De Solistitionis Insula Magna).
É a narrativa de uma experiência maravilhosa, com tempos e espaços ambíguos, com Ilhas, terras, rios, mares, torres e pontes. Este texto copiado num códice medieval do século XIV, encontrava-se no Convento de Alcobaça, perto da nossa terra natal, à beira do local onde costumo limpar os olhos e a mente, o mar das minhas ilhas filosóficas: Nazaré.

10_viajante
São doze pinturas realizadas em sintonia com estes temas pensando no nosso tempo de hoje e nas opções que poderemos tomar perante a vida e através da arte. Linhas, cores e texturas que fazem nascer espaços nunca anteriormente vistos. É este o maravilhoso contido no nascimento da obra! São visões sucessivas! E nós somos apenas «Trezenzonio», viajantes que tentam ver outros mundos subindo ao topo de uma torre, de uma montanha, de uma nuvem, de uma ponte ou de uma escada com asas, viajando pelas suas terras (natal) e enfrentando muitos faróis e tempestades pelo meio.




[1] Eliade, Mircea, (1992). Tratado da História das Religiões. Lisboa: Edições ASA.
[2] Kabakove, Ilya / Emilia (2003). Where is our Place? Veneza: Fondazione Querini Stampalia.
[3] Trezenzonii, De Solistitionis Insula Magna, Códice de Alcobaça, séculos XIII e XIV. Biblioteca Nacional de Lisboa: Alc. 37, fl. 118v – 120 e Alc. 39, fl. 359-360.


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