Quase como por
acaso, a minha leitura de férias está a ser a História das Perseguições Políticas e Religiosas de D. Fernando
Garrido. Composta por três volumes, editados em 1881 (Francisco Arthur da
Silva, Lisboa) e versando sobre os séculos antecedentes, estes livros são,
infelizmente, de uma atualidade evidente.
Também,
quase como por acaso, há uma exposição que estou a visitar frequentemente
durante este verão – A Sala de Ruth –
na Casa das Artes de Tavira.
A
pretexto das inúmeras exposições estivais que, ao longo dos anos, foram
construindo por ali uma estrutura cultural comemorando-se este ano pela
trigésima vez, imaginou-se uma
colecionadora que incorporasse todos aqueles amadores da Arte, que a
colecionaram, debateram, analisaram e contemplaram – que a viveram. Na Sala de Ruth é tudo isso se equaciona e
que, ao longo das noites quentes dos fins de semana de junho, julho e agosto, até
5 de setembro, se pode desfrutar informalmente, como quando se visita uma amiga
intelectualmente pródiga.
A minha leitura
estival é oposta. É construída de opressão, cinismo, iniquidade, vexames,
violência. Violações de todo o género. Ostentação e ganância. Um poder desumano
sobre o semelhante. Tudo em nome de grandes verdades e grandes mistérios para
enganar, de grandes artes de humilhar… tudo em nome de deuses ou de homens,
todos sem nomeação possível de tão baixos e vis. E tantas vítimas indefesas, a
maioria com grande nobreza de caracter, gente íntegra!
Na sala de Ruth
contempla-se obras de vários autores contemporâneos. São trinta como os anos,
embora tivessem sido muitos mais aqueles que passaram pela Casa das Artes de
Tavira. Ana Hatherly, Bartolomeu Cid do Santos, Catarina Botelho, Costa
Pinheiro, Fernanda Fragateiro, Isabel Sabino, Ivo, João Hogan, João Onofre,
Jorge Martins, Jorge Pinheiro, Jorge Vieira, José Faria, Julião Sarmento, Júlio
Pomar, Manuel Batista, Manuel João Vieira e João Vieira, Margarida Palma, Maria
José Oliveira, Miguel Proença, Nuno Calvet, Paula Rego, Pedro Cabrita Reis,
Pedro Calapez, Pedro Proença, René Bertholo, Samuel Rama, Susana Themlitz,
Vespeira, e Xana.
A vida é um
quase por acaso. A arte da civilização mais a montante da nossa está a ser
destruída. Onde surgiu a escrita, o livro, o código do direito dos vencidos, a
observação do universo, altos valores vilipendiados mais de vinte e cinco
séculos depois! Triste. Muito triste. Relevos e esculturas que julgávamos
eternos foram destruídos à picareta. Em nome de barbáries idênticas que são a
causa das palavras amargas que leio com amargura nos três volumes da minha
leitura de férias.
Na Sala de Ruth
a Humanidade redime-se pela Arte. Como sempre o único caminho. O livramento do
espírito está na dimensão artística, em qualquer das suas vertentes.
Uma
pequena pintura de Isabel Sabino (1955), aparentemente levíssima como o ar,
como a paisagem que se olha da estrada à velocidade com que hoje se percorrem.
Colagem de vozes e imagens, frases ditas, pensadas. Momentos. Também aqueles
que passam pelo pensamento, trazidos pelo vento… O grande placard de publicidade vazio. Pois, e se aqui a Branca se anunciasse.
Pois… O acrílico com um cromatismo a imitar as aguadas de algum apontamento de
diário gráfico, aparentemente descomprometido. Rigoroso: o pincel deixa cada
linha no seu lugar geométrico, cada mancha no seu espaço certo, a luz e a
sombra determinam uma espacialidade minuciosa. Uma alusão dramática, profunda e
irónica á paisagem da sociedade atual. Rapidamente. Rigorosamente.
Refinadamente.
No meu país
oferece-se ilhas da infelicidade grega como prenda de casamento… A Grécia é a
alma da Europa. A atmosfera e o mar Egeu deveriam ser o ar e a água que se
deveria respirar e beber na Europa. A Grécia é o pensamento e o sonho da
Europa. Não pode ser comprada, vendida, transacionada, humilhada, vexada, agredida.
Existe. É!
Na sala de Ruth
a gaveta do Pedro Cabrita (1955) excede-se, como sempre acontece nas suas
obras. E ainda bem que é assim. A baba da tinta “aconteceu” naquela gaveta-mala-objeto
incerto com um à-vontade de mestre. A trincha agarra a tinta na proporção
certa, a mão de gesto controlado, cerca-se do suporte, e aparentando um só
golpe, lento, preciso, duradouro no seu ápice, convocando todo um esforço da
atenção daquilo que se entende por momento artístico, remata o movimento e a
obra. A cor ilumina de súbito a textura da madeira. O objeto anterior é eleito
obra de arte, convocado entre os demais. A finalização será pouco mais, um
suporte ali, um puxador acolá, uma simetria, duas diagonais. Composição. Uma
obra clássica no seu mais perfeito dinamismo.
A estruturação
das sociedades é necessária para regrar comportamentos. Estrutura-se mediante
ideias, ideologicamente. Termo que hoje aflige muita gente. Não os gregos
democráticos, a maioria. Da Ágora só a arte (Abakonowicks) ainda teima em
falar. A globalização implementou a plutocracia, coisa sem rosto, sem vergonha.
Mas que ainda não se assume como ideológica.
Um
pequeno trabalho, uma parcela de um todo, uma vírgula de um discurso
transparente, vago e rapidíssimo. A espátula, veloz como golpe de cutelo, de
Pedro Calapez (1953), obriga a contorcer plásticamente contra o suporte as matérias
cromáticas, até que permitam a transparência, paradoxos aparentes,
descontextualizados do tempo da obra-mãe. O afastamento da parede faz com que a
peça pareça suspender, como se respirasse naquele momento e aquele espaço estivesse
de facto repleto de ar. Parece ainda estar viva. Vertigem num lapso de momento.
O que sentem as
vítimas inocentes quando torturadas até à exaustão sem que saibam do que as
acusam. Vertigem num lapso de momento.
Voltando
sempre à Sala de Ruth agora para
olharmos o Almoço do Trolha de Júlio
Pomar (1926). Podemos ver nesta obra histórias de vários náufragos…Mesa-mar
onde, meia comida, como barco sobrevivo a grande tormenta, a fatia de melancia
repousa, com arribas funestas, de picos agrestes, no horizonte. Em planos mais
próximos, vai a colher à boca do menino, como barquinho de ternura, qual
salva-vidas de um pai que dá tudo o que tem, náufrago da vida, de um fascismo
cor-de-rosa pálido, em que dos pés da mãe se pressupõem novo naufrágio, enquanto
um tem “bote” o outro, descalço, é como se fosse náufrago caído, enquanto a
pomba assiste e espera que as águas desçam, para encontrar pouso em terra e
trazer essa nova… Outra leitura, outro entendimento, a mesma obra. A obra de
arte está sempre aberta.
A espera é contínua
que o tormento e o medo permanente terminassem. Mas durante séculos vai
permanecer a lei do mais forte. Júlio Pomar realiza este trabalho em 1951. O
fascismo vai perdurar mais 29 anos… Como Júlio Pomar e muitos outros
antifascistas, D. João IV e Marquês do Pombal não conseguiram vencer a batalha
de deter a descomunal injustiça, desmedida ganância e a execrável ignomínia
perpetrada pela Inquisição em Portugal.
Mas
Hogan(1914) rejubila em 1974 e vem para a cidade dançar na praça. Tudo exulta a
vitória. Toda a natureza se abre. Sai das suas serranias, ravinas, precipícios,
e reconstrói a cidade de natureza, monumento e vitalidade. Dos planos maciços
transcende-se para outros completamente rarefeitos. Torna-se moço imprudente,
por momentos!
Tão breve a
vitória, como também nunca pensou ser a de D. João IV sobre a inquisição
portuguesa, pois, assim que faleceu, foi retirado do caixão e, depois de
despido das suas vestes reais, foi excomungado por ter recusado ficar com os
bens confiscados às vítimas da Inquisição, restituindo-os às suas famílias.
Rapidamente
nos encontramos defronte a outro grande senhor da arte contemporânea. Assertivo,
Jorge Pinheiro (1931) golpeia severa e rigorosamente o suporte como se
respondesse à questão colocada por Júlio Pomar. Dá um murro na mesa, acaba com
os náufragos, institui correção, luz que se faz pela cisão provocada por um
raio de treva. Ou a ironia geométrica da autonomização do barrete cardinalício,
uma e outra face de uma mesma verdade da arte.
De um só
triângulo se formavam as vestes dos carrascos inquisitoriais. Todos cobertos
para não serem reconhecidos e nada terem de humanos, apenas se lhe rasgavam os
orifícios no rosto para os olhos.
Ana
Hatherly (1929) tece cartas de amor com finos fios de tinta. Amor indizível.
Enlevos têxteis não descritíveis. Talvez a peça mais abstrata de todas da
virtual coleção de Ruth. Murmúrios constantes, permanentes, obsessivos. A duas
vozes. Um diálogo entre teia e urdidura que constrói a tecedura. O mundo. E a
comunicação do mundo. A Web também.
Em nome da
verdade, de um deus, e de um direito, desenvolveu-se um tal emaranhado que
todos têm medo da teia da Inquisição. Os jogos de poder, os compromissos, as
chantagens, são tantas que é dificílimo fugir-lhes, com a agravante de que o
medo infligido provoca falsas declarações, delações, incriminações e a
oportunidade gera a vingança, a avareza e a ganância. É um conjunto de grande
complexidade e que é cada vez mais ampliado nesse sentido para que se torne
incontrolável, imbatível e infalível.
Tal
como o trabalho de René Bertholo (1935) onde por vários momentos, que podem ser
um mesmo nas suas diversas possibilidades, se desencontra a vida consigo
própria, reencontrando várias possibilidades de se reencontrar. A estranheza de
se poder com os mesmos dados, modificando um pouco, obter-se resultados
diferentes. Ou de se manobrar as vontades ou manipular os resultados através de
pequenos pormenores.
Aquilo que os
governos vendidos a interesses exteriores manifestam para convencerem os povos
a permitirem que atuem em favor dos interesses de alheios. Os corruptos nunca
tiveram vergonha… Nem os verdugos.
Em
Miguel Proença (1963) podemos ser projetados em dois mundos. Um macro cósmico e
outro microcósmico. A decisão será nossa. Mas as sombras estarão sempre lá e
acompanharão ou o vírus ou o planeta.
A Humanidade
fica de permeio. As sombras aparecem sempre. Aparecerão sempre. Já não tenho
dúvidas. É intrínseco à natureza humana. Salve-nos a Arte. A Sala de Ruth está em Tavira precisamente para isso.
A
Ruth plasma todos os colecionadores, todos quantos amam a arte. Mas Ruth
aparece-nos como figura cautelar. Uma das três mulheres onde assenta a
genealogia das religiões do livro. Ruth ensina-nos a fraternidade, a tolerância
e a integração do Outro, do povo diferente, da cultura diferente. Traz até nós
conceitos de partilha com os demais, como o da respiga, tão conhecido dos
agricultores tradicionais, que depois do varejo e da apanha, permitem aos mais
pobres, o rabisco, uma segunda apanha.
O
debate, a partilha da arte por parte dos colecionadores amadores, abrindo as
portas das suas salas em pequenas tertúlias ou em museus, é um pouco esta
imagem de dádiva, troca e partilha. Daí a importância do amor não opressivo nem
obsessivo, daqui a importância da Sala da
Ruth.
Mas
A Sala de Ruth também é uma obra em
si mesma. É uma instalação do pintor Ilídio Salteiro que comissariou a
exposição comemorativa do trigésimo aniversário da Casa das Artes de Tavira.
Fundando-se esta em torno de amadores da arte, colecionadores e criadores, o
pintor concebeu uma sala de colecionador, criando em grupo um perfil que
aglutinasse esse universo. O autor também pretendeu resgatar o conceito
expositivo das paredes brancas e acéticas das galerias pós-modernistas, onde o
principal objetivo é a descontextualização da obra, valorando-a apenas pela
cotação do mercado. A salvaguarda de outros valores e as inúmeras interações,
muitas delas subjetivas, por isso impossíveis de referenciar, é importante para
uma humanização verdadeira da obra de arte e para um debate verdadeiramente
alargado.
A Sala de Ruth
abre as suas portas como uma opção redentora de muitos conceitos.
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