(anterior)
A Sala de Ruth III
Itinerário do Sal pelo Miso
Ensemble
Assim
como as características do céu estabelecem circuitos racionais para uma
compreensão do todo, as características físicas, os ecossistemas endógenos e
exógenos, a criatividade na resolução das adaptações ao meio, são determinantes
na linguagem dos pássaros.
Esta
“linguagem dos pássaros”, como gosto de lhe chamar, eclodiu ontem, pelo início
da noite, na Sala de Ruth, em Tavira.
Esses entes semelhantes a pássaros são os Miso
Ensemble. Três em um, ou em vários, que fomos todos os que assistimos ao
espetáculo multimédia de Miguel, Paula e Perceu Azeguime. E muitos mais haverá
por detrás da produção de Itinerários do
Sal, uma “opera”, como é caracterizada pelos autores. Um bando de pássaros.
Dos mais criativos, dos mais genuínos, dos mais salubres. Têm o mesmo tempo da
Casa das Artes de Tavira, onde atuaram pela primeira vez, entre amigos, como
hoje na Sala de Ruth.
Enquanto
nos pássaros da mesma espécie a linguagem é semelhante, na comunidade dos
Homens, existem por vezes alguns de entre os demais, de onde emergem grandes
criações com a mesma qualidade e teor. “Quase como por acaso” uns deixam-se
penetrar, mais do que os outros, por essa linguagem expressiva, onde todas as
artes se misturam e atuam em cooperação com o autor, assim como ele o faz
também, como passarinheiro que se deseja pássaro. Com um aparente desgoverno,
os autores demonstram uma concentração absoluta, Paula e Perceu aos comandos de
uma eletrónica aracnídea, Miguel liderando o cumprimento da rigorosa expressão
humana da obra, tornando-a leve e natural como o sopro de um improviso. O
desempenho demonstra o empenho, a autenticidade e fundamentalmente o grande
fascínio de fazer arte.
O
verão está a terminar, seguir-se-ão outros. O céu indicia um agravamento
atmosférico. Os cirros começaram por se pintarem de pôr-do-sol, instalando-se
pouco a pouco durante os dias. Paredes de estratos e limbo-estratos trouxeram
cortinas húmidas à altura do olhar durante a noite. O cheiro da erva seca
molhada, misturada com humidade da maresia, invade o coração de emoções
contraditórias. O frio parece ter-se instado. A ausência de vento acalmou a
superfície do mar. Os cúmulos adensam-se e ameaçam no horizonte. Mas a batalha
desenvolve-se nas camadas mais altas da atmosfera. Estou satisfeita pela
releitura do The Weather Hand Book.
Esta pequena obra lavou as mágoas da História dos homens.
Bartolomeu
Cid dos Santos (1931-2008) comove pela singeleza irónica com que conta a guerra
e as atrocidades das batalhas. Mickey, toma lugar do herói onírico,
metamorfoseando-se em besta de um olhar a outro. Encontramo-lo nos planos mais
próximos de nós, reproduzido como num caleidoscópio ébrio. Não percebemos quem
é quem. Não tomamos partido. Só sentimos a tremenda ironia da ligação entre a
raiva, o desespero e a euforia. Sentimos a poeira do ar inquinado, o ruído
surdo, o pisar dos corpos que não conseguiram vencer a gravidade. Ao fundo as
bandeiras agitam-se no ar. Vitórias ou derrotas são irrelevantes, como nos
jogos infantis... A estranha luta que a ambição, a especulação ou a avareza
provocam, dão o mote para esta obra.
Bartolomeu
Cid dos Santos doou uma grande parte da sua obra à cidade de Tavira, que não
tem mãos para a receber. Deixou-lhe também, através do patrocínio da Casa das
Artes de Tavira, uma oficina de gravura idêntica à sua em Londres, na Slade
School of Fine Art, onde lecionou e trabalhou. Hoje o seu espírito continua a
renascer trabalho após trabalho, residência após residência. A Casa das Artes
de Tavira, quando transborda, vai para a porta da Oficina Bartolomeu dos Santos
(OBS) e senta-se nas escadinhas que ligam a colina de Sant’Ana ao plano das
águas do rio Gilão. Como uma nesga de teatro grego, geralmente, um ecrã faz as
vezes de proscénio improvisado e o patamar da porta da OBS transforma-se em
terreiro da orquestra. Não existe altar porque as oferendas são intrínsecas à
arte.
A
última atividade calendarizada para este verão, Cadavre Exquis, é precisamente a apresentação pública das obras
produzidas a partir de interações diversos autores sobre uma das gravuras de
Bartolomeu, Atlantis de 1971.
Como
o Miso Ensemble, diremos que os itinerários do sal são poderosíssimos, embora
hoje em dia pouco valorizados. Estando num tempo de interrogações a todos os
níveis, a instalação de Ilídio Salteiro, Sala
de Ruth, propõe uma paragem para refletir e pensar os rumos que se
apresentam ao mundo e à arte contemporânea.
Dora Iva Rita, Santa Bárbara de
Nexe, agosto de 2015.
No comments:
Post a Comment