Mundo Novo & Natura Naturans, 2024.



























Mundo Novo foi o título encontrado para a exposição que se realizou no Salão da Sociedade Nacional de Belas-Artes entre 6 de fevereiro e 2 de março de 2024. Este título foi o elo que junta oitenta e oito trabalhos selecionados de entre o que foi realizado de 2018  a 2023.

Estas obras são feitas tendo o óleo como médium, umas sobre suporte de papel outras sobre suporte tela. A opção por esta tecnologia, «óleo sobre tela» não é uma mera solução de recurso. Resulta do facto de entendermos a Arte como um corpo constituído por três dimensões essenciais. A primeira tem a ver com o corpo em si mesmo, com a sua fisicalidade, uma segunda está de acordo com o seu corpo cultural, ou seja, dimensão plástica, e outra que privilegia os domínios das sensibilidades, uma dimensão estética.

Assim, quando optamos por uma dimensão física estruturada no óleo, estamos a optar por um médium ancestral, culturalmente vinculado à história da arte europeia ocidental. Quando nos referimos a esta dimensão física da Pintura como opção, referimo-nos às inúmeras tecnologias que poderiam ter sido nossa opção, desde a fotografia à imagem em movimento, desde a assemblage, a colagem, o acrílico, a aguarela, a têmpera, a encáustica, a pintura mural ou fresco até aos têxteis, às cerâmicas ou ao mundo das instalações. Mas não o foram.

O óleo é o líquido mais denso do que a água, com alguma viscosidade, que alivia agruras e imperfeições de caminhos. É o lubrificante das engrenagens, das coisas e dos corpos, suavizando atritos e asperezas. Situando-nos apenas na pele, o óleo que utilizamos quotidianamente suaviza e perfuma o corpo, a face ou as mãos, com variadíssimas origens, marcas e modelos no mercado desde épocas muito antigas até hoje, cumpre uma função mediúnica entre os suportes e a imagem que damos de nós. Desde a origem da civilização até hoje o óleo desempenha um papel divino, purificador, protetor espiritual, terapêutico, glorificador, cumprindo rituais de consagração e de doxologia. O óleo é um dos médiuns da Pintura e cada médium define uma tecnologia. Este médium é o elemento que se situa entre a camada visível constituída por pigmentos e a fixa às outras matérias que se constituem como suporte.

O médium óleo é um dos servos que concretizam os desejos e vontades do artista. No final ele apenas é uma invisibilidade que garante a permanência da matéria compositiva sobre o suporte estrutural. Ele persiste e solidifica adquirindo resistência a todo o tipo de alterações climáticas. Esta tecnologia foi escolhida por dar a garantia, comprovada com mais de seiscentos anos de uso, de ter a capacidade para agregar matérias sólida e permanentemente. São estas matérias que se interligam e se constituem numa camada pictórica com dimensão plástica e dimensão estética próprias.

O médium óleo também cumpre uma função semântica. Ele é o escolhido como reação perante a efemeridade dos meios tecnológicos que circulam na vanidade dos tempos atuais, com soluções digitais, realidades virtuais, aumentadas ou imersivas, com avatares, autómatos e robots, com artistas, autores e marcas, com inteligências artificiais promotoras de confusões premeditadas por desconhecidos entre conceitos de verdade, mentira, criatividade, inovação e arte. Uma opção estética pelo reconhecimento das raízes de uma pintura europeia num momento em que o multiculturalismo se encontra em perigo por causa das dimensões gigantescas que atingiu a luta egocêntrica da globalização protagonizada por superpotências em lutas interessadamente (ir)racionais.

Com o uso do óleo procuramos ainda privilegiar propostas e soluções estéticas perenes e fisicamente presentes, visíveis e palpáveis, com a consciência de que estaremos a construir novos corpos ou novos mundos.

A dimensão plástica leva-nos para uma pintura demorada e reflexiva, permanentemente em construção nos espaços oficinais de investigação, estudo e realização que cada processo artístico exige, sem outras preocupações que não sejam as da sua forma e composição. Uma dimensão plástica que trata daquilo que é comum a todas as tecnologias da pintura, ou seja, os seus elementos estruturais como linha, ponto, plano, textura, cor, equilíbrio, proporção, escala, harmonia, contraste ou padrão.

A nossa atitude perante a dimensão estética das obras não valoriza a efemeridade da vida. Privilegia efetivamente a perenidade da obra como coisa oferecida á acuidade de todos, pela identidade de alguém. Uma identidade que se espelha na obra como coisa verdadeira e autêntica, que todos identificamos como expressão. É a expressão que identifica uma linguagem, uma época, um local e um ser. Quando se fala na comunicação inerente a uma pintura referimo-nos apenas á sua capacidade expressiva. Uma capacidade para se emancipar de qualquer mensagem primária e interagir diferentemente com quem a observa.

A expressão está omnipresente na Arte, mas a sua valorização exclusiva só foi conseguida nos séculos XIX e XX, com o advento das democracias posteriores à Revolução Francesa (1789-1799), as quais nos libertaram de paradigmas de classe possibilitando sermos nós mesmos, exprimindo-nos de acordo com o que pensamos e somos, constituindo aquilo a que hoje chamamos “liberdade de expressão” nas sociedades democráticas. Uma liberdade que está progressivamente a ser colocada em causa quando surge um universo de tantas realidades e tantas naturezas, confundindo-se o romantismo com sentimentos, e onde a mentira é vendida como verdade. Torna-se difícil distinguirmos os factos que nos rodeiam porque a expressão, como vitória da identidade individual, encontra-se fragilizada pela imposição de paradigmas coletivos invadidos por interesses parcelares. Por isso resta-nos seguirmos as nossas opções.

A nossa atividade artística desde sempre que advém de uma vontade de marcar uma posição perante a crença fanático-religiosa e contemporânea na efemeridade das coisas e da vida, onde impera o efémero.

 

Durante dezenas de milénios, a vida coletiva se desenvolveu sem culto das fantasias e das novidades, sem a instabilidade e a temporalidade efêmera da moda, o que certamente não quer dizer sem mudança nem curiosidade ou gosto pelas realidades do exterior…  (Lipovetsky, 1987).

 

A crença no império da moda, assim como no consumo, no espetáculo, no dinheiro como critério de avaliação de qualidade da vida, e no tempo presente desprovido de passado e futuro, aceita como inevitáveis os valores da periferia desfocada de si própria, ou seja, valores de uma centralidade militar mundial com lutas geopolíticas atuais ingloriosas e decadentes. Valores que lhe são incutidos como civilizados, benéficos, modernos e portadores de felicidade, mas que nos conduzem a uma íntima aceitação de um apocalipse bíblico anunciado.

Não cultivamos uma visão da arte como uma ideia neoliberal, como uma ideia ligada exclusivamente aos critérios de avaliação regulados por um sacro-mercado, apoiado em marketing ou publicidade pura, nem na imagem ou perfil endeusado, diabólico ou louco de artista como ser sobrenatural, supremo e acima do mundo dos outros, vulgares e mundanos.

Preferimos acreditar na perenidade das coisas que a humanidade sabe, faz e constrói, afirmando-se como uma existência num universo infinito e multicultural. Acreditamos na humanidade no seu todo, como entidade que deve cuidar da sua existência, sem comportamentos suicidários, egoístas, desistentes e decadentes. Porque a aceitação da efemeridade das coisas corresponderia a uma aceitação de vida exclusivamente baseada em mim e no tempo presente, esquecendo raízes culturais e não perspetivando objetivos para o futuro. Como se o meu ego fosse a única ideia de universo, radiante de contentamento com qualquer meio que o transporte por umas horas para uma felicidade egoísta, individual, sem preocupação alguma com a partilha de pensamento sobre a Vida no contexto da Natureza.

A felicidade ainda continua a ser o mote de um admirável mundo novo (Huxley, 2013) onde uma felicidade fundamentada na eterna juventude, no belo, no saudável e no próspero, nega à sociedade atual qualquer noção de solidariedade ou fraternidade. Uma felicidade estabelecida por governanças que, escudadas na razão e na ciência, são capazes de instituir comissões e ministérios da verdade, da paz, do amor ou da riqueza (Orwell, 2007) para nos resolverem todos os problemas e atingirmos a pura felicidade no âmbito da nossa curta existência.

Deste modo, depois de equacionarmos as escolhas, as opções, os pontos de vista que organizam a oficina da nossa atividade artística, vamos partilhar o pensamento específico que nos levou a elaborar o conjunto de trabalhos que integram a exposição de oitenta e sete pinturas.

Esta exposição foi estruturada em três secções: a primeira chamamos Faróis e Tempestades, a segunda Delimitações e a terceira Soneto em Construção. De permeio acentuamos o Ritual da Pintura e evidenciamos uma espécie de Prefácio ou Posfácio pictórico. (Ilídio Salteiro, Mundo Novo, extrato de texto de apresentação do catálogo da exposição Mundo Novo, Sociedade Nacional de Belas Artes, Lisboa, fevereiro março de 2024)







 



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