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A Sala de Ruth II
A Casa das Artes de Tavira
Há
quem se sente e toque o piano ou simplesmente lhe experimente o som. Há quem se
sente e folheie uma revista. Há quem todos os dias, já noite, lá entre, bebendo
um copo, para ver um pouco do documentário do ídolo da sua juventude holandesa.
Também já vi crianças espalhadas pelo chão a manusearem livrinhos. Há quem
apenas se sente para contemplar melhor as obras expostas na Sala de Ruth. Eu vou lá para encontrar
os amigos que já não são apenas estivais. Tudo isto, para além dos encontros e
atividades calendarizadas.
Contemplar
uma obra de arte é mais do que tropeçar na vertigem do rompimento do
quotidiano. É dialogar com coisas, de aparente natureza inerte, mas que se
revelam agentes ativos, atuantes e extraordinariamente permeáveis a quaisquer
referentes. A contemplação das obras de arte visuais pode ser tão profunda, completa
e gratificante quanto a audição de uma obra musical ou a leitura de um texto
literário. A contemplação é um “aCto” distinto, que nos sugere e orienta para a
experimentação de níveis diferenciados nas abordagens à vida. Se para isso
estivermos disponíveis e, acima de tudo, se o desejarmos…
Há
dois dias que acabei de ler os volumes da História
das Perseguições Políticas e Religiosas de D. Fernando Garrido, acabando
pelas desventuras nacionais entre constitucionalistas e absolutistas. Há dois
serões que me sento na sala da Ruth a observar e a escrever mentalmente sobre
as obras que tem colecionado. Quando tenho dúvidas é através delas que recebo
as respostas.
Marcelino
Vespeira (1925-2002) promete-nos um sensível esclarecimento de sensualidade e
liberdade ‑ a gestação da semente que refulge, vibra e cresce, como núcleo da
obra. A luz-pássaro-pomba que se liberta energicamente denuncia o momento da
eclosão. O desfrute do colo feminino solto de uma qualquer árvore, pronto a
reproduzir-se. Célula. Acto de amor no limite mais essencial do enigma, como
Vespeira sempre desejou a vida.
Pouco
se fala de amor na minha leitura estival. Mas nas entrelinhas adivinham-se
grandes afetos, dignos de gente em extremos limites vitais e que faz grandes
provas disso.
As
cores fortes de Pedro Proença (1962) desfazem-se em nuvens de algodão de feira.
Doces e pegajosas a lembrar narrativas da infância. Espessas, “matéricas” e
fortes. Imprecisa é também a representação e a interação entre os diversos
personagens, desenhando-se uma deambulação nos corredores da irracionalidade,
entre a brincadeira, o ludismo e o drama.
Tão
estranha como a história, descrita na minha leitura, das duas meninas que
brincavam com um gatinho vestindo-o de trapos, restos dos seus vestidos. Assim
brincavam com o animal doméstico. Infelizmente os trapos eram azuis e brancos.
Alguém viu o gatito assim ataviado e as crianças alegres. Alguém as denunciou.
Foram presas, assim como suas mães, e passaram cinco anos nos calabouços.
Decorriam os anos de 1827-1832 na cidade da Guarda.
Imagino
sobre uma tela um duelo de brincar entre João Vieira e João Manuel Vieira (1934
e 1962), pai e filho a pintarem à desgarrada. A paleta vibra e as formas
encontram significâncias perigosas, arremedos que um e outro fazem. Punhais,
pregos, triângulos vermelhos. Jogos perigosos mas fraternais. As cores
vibrantes contrastam, discutem e assumem-se umas perante as outras. Nem uma
letra, nem uma palavra. Mas a máscara existe, e a figura central, de olhos
vazados, é azul…
D.
Miguel perseguia o azul. Tudo o que refletisse a luz nesse comprimento de onda
simbolizava o seu inimigo, portanto deveria ser perseguido, preso, torturado
para que confessasse a infâmia. Eventualmente liquidado. Mulher portadora
inocente de xaile azul a cobrir os ombros, seria por isso incomodada. Nem
aqueles cujos olhos fossem de sua natureza azuis escapariam à fúria do rei
usurpador. Não sei o que pensaria D. Miguel do céu ou do mar… Também custa
acreditar que as fontes da minha leitura sejam verdadeiras… (Mas é geralmente
pela inacreditável irracionalidade da brutalidade que os povos acabam por
consentir que ela lhes invada e se acomode no quotidiano).
Na
Sala de Ruth olhamos para cima do piano e defrontamo-nos com uma obra
monocromática, com tom escuro, equivocamente situada entre o magenta, o violeta
e o púrpura. O suporte é um segmento circular, com a base horizontal
corresponde ao segmento da corda. As linhas são determinadas pelos
altos-relevos que se sobrepõem e apenas se percecionam pela sombra que projetam
no plano que lhes é inferior. Nesse suporte de forma invulgar, Manuel Batista
(1936) evoca topografias de um imaginário racional, como se de maqueta
territorial se tratasse, anfiteatros irregulares sobre praças de geometria
regular. A geometria dos planos mais baixos contrapõe-se inesperadamente às
arritmias das regiões superiores. Destes estranhos anfiteatros podemos antever
o poder do mapeamento e da normalização que pode advir através do conhecimento
com que nos guia. Mas sobre este mapa tridimensional podemos sobrepor diversos
referentes e, seja ele qual for, a coerência será semelhante e o debate
interior riquíssimo.
Existem
livros que foram lidos há tempos que a memória esquece, mas que construíram o
que somos. Gosto de repescar da estante livros já lidos, principalmente quando
desejo fazer pausa daquilo que me comprometi fazer na vida. “Quase como por
acaso”, são chamados de novo à experimentação, a um novo teste, no embate
daquilo que sou com aquilo que cada um deles me pode ainda dar. Ontem descobri ‑
redescobri, melhor dizendo, Mitos e
Símbolos na Arte e Civilização Indianas (Lisboa, Assírio & Alvim,
1997), uma compilação de conferências proferidas em 1942 por Heinrich Zimmer
(1890-1943). Recordo-me do quanto foi importante para me situar corretamente num
entendimento das questões relacionadas com a filosofia oriental. Na sua
releitura, ontem e hoje, aferi se o referencial, que durante estes anos tenho
seguido nestes temas, ainda é coerente com o seu pensamento. Senti-me a reler
um mapa mental antigo… Neste mapa, as curvas de nível são a poética da cultura
e da arte orientais, caminhos por onde se pode ter ainda acesso às praças que
fui edificando.
Em
cima do mesmo piano está uma escultura de Jorge Vieira (1922-1998), pesada do
cobre que a configura. A sombra que a forma projeta, empurrada pela lisura
firme da luz dos leds, contém a mesma
riqueza pictórica da pequena peça, sendo tão expressiva quanto a obra. O que
representa pouco importa de tão genuína ser a forma, podendo-se identificar
seres de qualquer espécie. Têm dos vegetais e dos insetos a elegância da leveza
ao ar, a fluidez de uma cascata ou a rotundidade das pedras trazidas pela água,
dos humanos um incandescente erotismo. Pode invocar um trajeto de glorioso amor,
uma qualquer vitória revolucionária, veleiro de dois mastros ao acostar ao
destino.
Há
momentos assim, plenos, sobretudo ligados à arte. Aqueles que se constituem de
música são os mais eficazes. Na vida quotidiana ganham-se dificilmente, mas
perdem-se muitíssimos mais no limbo das hipóteses menosprezadas. Desses poucos
momentos que nos chegam, alguns existem durante o sono, no sonhado e,
frequentemente, não são reconhecidos. Outros nos diálogos, nas leituras, no
sonho dos livros, das escritas e das ideias. Estes momentos são salvíticos e
sempre transcendentes. Daí haver quem acredite serem obra de divindades. Mas
são apenas Arte manifesta e a particularidade do que a qualifica como tal.
Dois
retratos angulam-se num dos cantos da sala da Ruth, um formado pela memória
icónica dos despojos na obra de Costa Pinheiro (1932), outro pela intensidade da
ingenuidade que transparece dos rostos. Reconhecer o outro pelo hábito é
recusar de certa forma a profundidade do ser. Apresenta-se pois como ofício
indireto do retratar, um equívoco entre a paisagem, a memória e o carisma.
Institui-se mais pelo desígnio descritivo do que pela essencialidade de ser
criatura. Ivo reconstitui-se, quase perdido de tão ingénuo, na sua autorrepresentação.
Oferece-se assustado por quem o olha. Abdica da postura empática, renunciando
aos prováveis diálogos que atravessarão a representação do seu rosto. Estranho
o drama de se retratar recusando o embate da comunicação elaborada. A cor ilumina-o
centralmente. O olhar retrai-se. Um retrato que foge sem se retirar. De outra
forma, diferente da utilizada por Costa Pinheiro, apenas retraindo-se até ao
não mais saber de si.
Uma
outra leitura de férias foi um pequeno e completo The Weather Hand Book. Escrito por Alen Watts (Shrewsbury,
Weatherline Books, 1994), permite-nos organizar o nosso raciocínio frente ao
céu e perceber o que preconizam as formas, as cores e os movimentos do ar,
quando remetido para o céu e para as nuvens. Os indícios são, provavelmente, os
mais fortes argumentos para se tomarem decisões acertadas. É bom poder perceber
se amanhã vai estar estio ou se de madrugada vai haver borrasca. É bom e dá
segurança, aquela que dantes a cultura tradicional tinha e que permitia a
confiança das trocas sem colonialismos.
O
Nuno Calvet (1932) dá-nos a maioridade estética através duma prova fotográfica.
O que parece improvável é realçado. É como deixar de ver figuras imaginárias
nas nuvens e passar a olhá-las objetivamente, exatamente aquilo que são. É
descobrir o fascínio estético sem efabulações nem fantasias. Mas deixando a permissão
para todas as possibilidades de autenticação icónica.
Pela
observação dos indícios, quando estamos demasiado perto, não nos podemos
aperceber que aí vem uma grande tempestade. Como The Weather Hand Book, os períodos de paragem do trabalho são
fundamentais para perceber o todo, onde e como nos integramos.
Do
mesmo modo que na Sala de Ruth, a colecionadora de arte que expõe um conjunto
de trinta obras na Casa das Artes de Tavira, uma fantasia-fundamento de
deambulação estival pela contemplação estética das artes visuais. “Quase como
por acaso” a Sala de Ruth abre as
suas portas como uma opção redentora de muitos conceitos.
Dora Iva Rita
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