AS COISAS QUE EU FAÇO E
DESENHO
Obras
de Dora Iva Rita
Em primeiro lugar, há que
andar um pouco à roda da palavra «coisas»… Coisas vivas ou inanimadas, produtos
da Natureza ou fabricados pelos humanos – todas essas «coisas» foram objeto da
curiosidade da Pintura desde a Antiguidade Clássica aos nossos dias, dando
origem a um género, a chamada Natureza Morta, que, talvez poucos saibam,
começou por ser designada, em finais de Quinhentos e inícios de Seiscentos,
pela interessante expressão «Instantes suspensos de vida», ainda hoje presente
na versão anglo-saxónica Still Life ou
Still Leben… Pretendiam os primeiros
pintores barrocos congelar o instante e, no caso da Natureza Morta, o famoso
Jan Brueghel almejava a que a Pintura conseguisse «superar» a Natureza,
apresentando grandes jarras com flores frescas de todas as épocas do ano, que
ele ia pintando ao longo dos meses e das estações, surpreendendo o espectador
da época que via juntas espécies de janeiro ou março que já estariam secas
quando floresciam as de outubro ou dezembro…
Não são, naturalmente,
essas as preocupações de Dora Iva Rita, embora os processos de registo ou de
composição possam ter algumas dessas boas referências… Dora Iva também constrói
as suas assemblages de «coisas», umas resultantes da Natureza outras claramente
fabricadas pelo engenho humano, e, em quase todas elas, há qualquer coisa de
«ninho», não só pela forma e pelos materiais, mas sobretudo pelo simbolismo
associado à geração da vida, aqui como que suspensa, sem os desabrochamentos imediatos
que se pressuporiam, embora se adivinhem voos, e portanto desenvolvimentos
vitais, nos elementos circundantes, que tanto evocam asas de ave como velas de
barcos ou até pétalas abertas de uma corola… Em suma, evocação de Vida, apesar
de estarmos a ver objetos aparentemente inanimados.
Já os desenhos narram
outras histórias… Alguns são claramente exercícios de registo e variação sobre
as assemblages, mas, ao introduzir novos ângulos de visão, elas
transfiguram-se, perdemos, até, a referência da sua materialidade original,
tornam-se outras obras, frescas revisitações ora de um certo aconchego do ninho
ora das esvoaçantes pétalas ou velas que anunciam o desabrochar de uma pulsão
vital, erótica…
Em muitos outros casos,
porventura a maioria, perdem-se completamente as referências às «coisas» das
assemblages expostas para nos concentrarmos nas referências a outras «coisas»
que estão sempre na origem desse olhar milenar da Pintura, vestígios da Natureza,
arranjos quotidianos desses vestígios, composições feitas de combinações desses
vestígios e de objetos do quotidiano, numa infinita variação sobre os mesmos
motivos que nunca se esgota porque é o renovado olhar sobre cada um deles e
sobre os conjuntos que aleatoriamente se podem formar, é esse olhar da pintora
que se reinventa incessantemente.
Esta exposição, que
desvenda um olhar predominantemente «micro» sobre as «coisas», aparece numa
espécie de cubo construído ao centro de uma outra exposição, que o rodeia, de
pintura do companheiro de Dora Iva, Ilídio Salteiro, que explora espacialidades
vastas e construídas do seu imaginário, em formatos generosos, em contraste com
os formatos «intimistas» no interior do cubo, proporcionando-nos uma
extraordinária e rara complementaridade de visões e de modos de fazer que
enriquece e muito a Pintura Contemporânea.
Janeiro de 2024.
Fernando
António Baptista Pereira
ESPAÇOS
E CONSTRUÇÕES, LUGARES DO IMAGINÁRIO
Sobre
a Pintura de Ilídio Salteiro
Quando olhamos para o
conjunto das pinturas de grande e médio formato que Ilídio Salteiro expõe no
grande salão da Sociedade Nacional de Belas Artes percebemos, quase de
imediato, que um denominador comum emerge: a relação multímoda entre
espacialidades e construções no universo imaginário de uma pintura que, acima
de tudo, interroga fronteiras entre géneros seculares na História da Pintura e
entre modalidades do próprio «fazer» pictórico.
Sejam visões de paisagens
imaginárias a partir de ou ao lado de imagens de interiores
construídos em formas límpidas e luminosas, sejam construções imaginárias que,
numa geometria muito criativa e sem quaisquer preocupações de «funcionalidade»,
envolvem, contém ou separam imagens exuberantes e sensuais de paisagens
inventadas, com vagos referentes – é este o «pano de fundo» cenográfico em que
se ensaiam relações muito sábias entre o desenhar e o pintar, entre manchas
violentas, matéricas e eloquentes que definem formas, volumes e profundidades e
apontamentos subtis de desenho que desafiam os ilusionismos evocados e nos
sublinham que estamos sempre e só diante do esplendor da Pintura e do Desenho
nos seus infinitos avatares...
Há, certamente, para além
de uma manifesta sensualidade da execução, mensagens subliminares, algumas das
quais nem o autor conseguirá controlar, simbolismos procurados no número das
composições de certas temáticas, quase como num ritual ou numa espécie de
litania que ele nos quer recitar na calma e na serenidade da sua personalidade
de artista, e, até, saborosas citações de grandes mestres da História da
Pintura que, como o compasso no olhar que reivindicava Miguel Ângelo, já fazem
parte da memória de todos os artistas, quer das imagens que a toda a hora se
convocam, quer do fazer que se materializa na superfície das telas.
Mas o que acaba por
prevalecer é uma atitude claramente meta-pictural em que se reinventa a
possibilidade de uma Pintura, nos dias de hoje, que não é, uma vez mais e
apenas, uma «paisagem da Pintura» ou uma «paisagem do fazer», mas, além de tudo
isso, uma reflexão inovadora e pertinente sobre a fluidez dos limites dos
géneros consagrados e desconstruídos na história recente e, sobretudo, das
modalidades técnicas que distinguem e fazem conviver e interpenetrar o inefável
prazer espiritual e o deleite sensual de desenhar e de pintar.
Esta exposição, que nos
revela um olhar claramente «macro» de espacialidades vastas e sensuais e de
construções engenhosas desenhadas e pintadas para com elas dialogarem, envolve
um outro espaço expositivo mais pequeno, ao centro, que se encontra povoado, em
absoluto contraste, por uma visão «micro» dos objetos e dos desenhos realizados
pela companheira de Ilídio, Dora Iva Rita, numa interessante complementaridade
de modos de ser e de estar na Pintura, na continuidade de tantas outras que a
História e tempos mais recentes conheceram e divulgaram, que vivamente se deve
saudar e acarinhar!
Janeiro de 2024.
Fernando
António Baptista Pereira
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