09/11/2015
03/11/2015
23/10/2015
Carlos VIDAL, Invisualidade da Pintura: Uma História de Giotto a Bruce Mauman
Este é um livro sem começo nem fim,
enciclopédia pós-hegeliana das ciências filosófico-visuais em epítome ou, de
forma mais abreviada, um livro de considerações sobre objectos invisuais e
acontecimentos artísticos que subvertem e superam a lógica e o sentido das
obras de arte e dos acontecimentos. Em suma. Este é o livro que todos já lemos
um dia antes de o termos lido, tal é a natureza polimorfa da sua força
interpretativa e o estilo surpreendente das suas linhas de fuga.
CARLOS FRANÇA (Sobre “Invisualidade da
Pintura”)
Sul Caravaggio c'è ancora molto da dire,
specialmente per quanto riguarda il forte contrasto chiaroscurale. Il Suo
piccolo libro rappresenta un'importante scelta di campo e sono certa che sia un
contributo che aggiunge qualche cosa di nuovo.
MINA GREGORI (Sobre “Deus e Caravaggio”)
18/10/2015
Museums......
Noah Fischer, Photo: Joanna Warsza
.....Today museums are an important part of the neo-liberal system, which we are protesting on Wall Street. Museums are like temples of this system, actually; they reproduce the logic of the system, reify its symbols, and are financially dependent on it. Actions by Occupy Museums are about opening up a very large, honest, transformative conversation about the presence of money and power in the world of art and culture... (Ler mais / read more)
10/09/2015
João Castro Silva «Draperies» - Sala do Veado, Lisboa
Exposição de João Castro Silva, Draperies, na Sala do Veado
Ensaios do Ver
Panos ao vento, tentativas de redenção. Sobrevidas. Migrantes.
Barcos manhosos, roupas molhadas, rasgadas. Subvidas. Migrantes.
As tábuas flutuam, as roupas encharcam-se, as vidas submergem. Migrantes.
As tábuas unem-se em frágeis jangadas em águas imprevisíveis. Migrantes.
João Castro Silva, Draperies, 2015
Sala do Veado até 27 de Setembro de 2015
Rua da Escola Politécnica, 56 / 58, Lisboa
A migração das formas por entre
matérias permite imprevistas trocas semânticas. A migração das ideias por entre
as formas elucida os espíritos. Interrogamo-nos sobre a vida como um todo maior
do que ela é. A arte traz-nos essa outra realidade onde pode confluir tudo o
resto que desejarmos ter como referente. Sem limites ou preconceitos,
deixemo-nos migrar para a obra com tudo o que somos.
João Castro Silva consegue
incorporar na madeira a ductilidade da água, a leveza do ar, o peso da pedra, a
uma estranha espacialidade de luz.
A matéria-prima é madeira de
árvores que vencem o nosso tempo, podendo viver na casa dos milhares de anos. A
matéria-prima advém de entes de metabolismo mais lento do que o nosso, de
verticalidade extraordinária dos seus 70 m de envergadura, com folhas que
lembra vegetações de épocas muito mais antigas. A matéria-prima tem um odor
agradável e é rosada como a pele do escultor, leve e com uma densidade de 300 a
420 Kg por m3. A Criptoméria-japónica,
um tipo de cipreste oriundo da China ou Japão, é hoje endémica em muitos outros
locais do mundo, como nos Açores, onde se sobrepôs à floresta autóctone da
Laurissilva. É uma forte e resistente, daí o ser uma árvore de culto,
envolvendo os santuários e os templos nipónicos.
A madeira é, das matérias-primas
da escultura, aquela que mais próxima está da natureza humana. Ao deixar de ser
árvore e passar a ser obra de outro arbítrio, transmuta-se e alcança uma outra
natureza, aquela que a Humanidade almeja a da Arte ou a do espírito, as que
não têm matéria e se cumprem através da matéria do Outro. O escultor dá-lhe
outra natureza, não desprezando, no entanto, tudo o que carrega desde a sua
origem, por mais desconhecidos que sejam os seus percursos.
O valor semântico de cada peça exposta é tão expressivo, eloquente e
diverso, que remete o observador para uma transcendência, transformando-o em
contemplador. E também modifica o espaço. Sacraliza-o. O balancear, parece
existir e ser permanente, comprometendo o olhar e a preceção do ar em
movimento.
As cisões entre as tábuas marcam o todo como veias ou como sulcos de
navalha. Ou como um simples padrão riscado de roupagem que já foi vestida. As
ideias irrompem à medida que os olhos afagam as superfícies. A delicada leveza
das peças e da instalação surpreendem por contrariarem o próprio conceito de
matéria esculpida. O têxtil sobrepõe-se-lhe. A ideia sobrepõe-se à matéria. De
facto as peças parecem levitar a cima do chão com a ajuda do ar. Ao circular
por entre elas percebemos a sua verdadeira natureza, mas aí já a nossa perceção
nos encantou. Jogar com estes limites e saber não cair em redundâncias
estéticas redutoras ou híper habilidades, demonstra uma criação e saber fazer
de mestre. Por instantes vem-nos à memória o assombramento dos Abakans de Magdalena Abakanowicz (1930),
os vultos suspensos dos Pronomes de
Ana Vieira (1940), a fragilidade cenográfica das instalações de Kaarina
Kaikkonen (1952). Também existe o travo de algum acampamento improvisado de
migrantes ou de vivências já desusadas da urbanidade mediterrânica.
As tapeçarias alvas, dependuradas em linhas vagas que unem vão a vão e
recortam o espaço, são cortinas, separações que escondem do olhar para além de
si. Podem ser mortalhas, sudários, mantéis. Podem ser tudo aonde a imaginação
ilusória nos transporte. Podem referenciar-se como absurdos ou fascínios,
grandes utopias ou pequenas verdades.
Mas são esculturas relevadas em madeira. São trinta e nove peças com
escala humana, variando entre os 70 e os 100 cm em altura ou largura, em que o
espessamento não ultrapassa os 7 cm. O escultor primeiro une tábuas isoladas,
depois talha-as como se fosse santeiro tradicional vestindo alguma figura
mística. Castro Silva é também o imaginário mas já só cria abstrações, ou os
panejamentos que cobririam hipotéticas figuras. Fá-lo com ferramentas
semelhantes mas mais rápidas, numa associação da energia própria ao escultor
com a que a eletricidade lhe faculta. O polimento final é também semelhante ao
que o imaginário dá à sua imagem e é do domínio da pintura. A pintura encobre a
matéria e obriga-a a fingir-se mármore, pele, aumentando o protagonismo
semântico das obras.
As cortinas encobrem o que se
pretende mais íntimo. A vida é comunitária. Por mais que pareça contraditório.
O tecido cobre e mancha-se. A água retira essas marcas, o ar seca-as. Como
animal que lambe as feridas para as sarar. A arte sara. É curativa como Louise
Bourgeoise (1911-2010) percebeu.
Estamos no ano de 2015 da era de Cristo. Os náufragos do Mediterrâneo
são deuses adormecidos como nós. Cada um é um nós. A dor é sempre coletiva,
assim como o medo ou a gratidão. A fuga pela sobrevivência é comum a todo o ser
vivo. Quando se é migrante procura-se porto seguro junto de outros mais
imparciais. Migrar de um para outro é reconhecermo-lo em nós. Civilidade é
perceber-se isso e construir sociedades que se cumpram nesse desígnio.
A acuidade percetiva possibilita sentir o outro ‑ a dor, o desejo, o
júbilo. A mesma perceção que possibilita que sejamos amantes da Arte, porque ao
amar o Outro é para nós que nos dirigimos. Por isto a Arte é o sustentáculo da
civilidade e por isso é tão importante saber senti-la, reconhece-la e vê-la. E
se possível exercita-la, como João Castro Silva nos sugere.
A exposição instalativa Draperies
do escultor João Castro Silva (1966) está a decorrer em Lisboa, na Sala do
Veado do Museu de História Natural e da Ciência, até ao dia 27 de setembro de
2015. O museu fica ao Príncipe Real, na Rua da Escola Politécnica, junto ao
Jardim Botânico, onde pode passear sob a sombra de uma Criptoméria-japónica. Silenciosamente consigo, entre pela porta da
antiga faculdade das Ciências da Universidade de Lisboa e migre pela
instalação. Construa o seu barco.
Dora Iva Rita
Lisboa, Setembro de 2015
Lisboa, Setembro de 2015
29/08/2015
A Sala de Ruth - Cadavre Exqui
Cadavre Exqui, é uma exposição colectiva de Ana Eliseu, Bertilio Martins, Ivo, Manuel Furtado dos Santos, Margarida Palma, Miguel Andrade, Oona Grimes, Pedro Proença, Samuel Rama e Susanne Themlitz com obras produzidas a partir de intervenção sobre a gravura «Atlantis» (1971) de Bartolomeu dos Santos.
22/08/2015
A Sala de Ruth - Miso Ensemble
(anterior)
A Sala de Ruth III
Itinerário do Sal pelo Miso
Ensemble
Assim
como as características do céu estabelecem circuitos racionais para uma
compreensão do todo, as características físicas, os ecossistemas endógenos e
exógenos, a criatividade na resolução das adaptações ao meio, são determinantes
na linguagem dos pássaros.
Esta
“linguagem dos pássaros”, como gosto de lhe chamar, eclodiu ontem, pelo início
da noite, na Sala de Ruth, em Tavira.
Esses entes semelhantes a pássaros são os Miso
Ensemble. Três em um, ou em vários, que fomos todos os que assistimos ao
espetáculo multimédia de Miguel, Paula e Perceu Azeguime. E muitos mais haverá
por detrás da produção de Itinerários do
Sal, uma “opera”, como é caracterizada pelos autores. Um bando de pássaros.
Dos mais criativos, dos mais genuínos, dos mais salubres. Têm o mesmo tempo da
Casa das Artes de Tavira, onde atuaram pela primeira vez, entre amigos, como
hoje na Sala de Ruth.
Enquanto
nos pássaros da mesma espécie a linguagem é semelhante, na comunidade dos
Homens, existem por vezes alguns de entre os demais, de onde emergem grandes
criações com a mesma qualidade e teor. “Quase como por acaso” uns deixam-se
penetrar, mais do que os outros, por essa linguagem expressiva, onde todas as
artes se misturam e atuam em cooperação com o autor, assim como ele o faz
também, como passarinheiro que se deseja pássaro. Com um aparente desgoverno,
os autores demonstram uma concentração absoluta, Paula e Perceu aos comandos de
uma eletrónica aracnídea, Miguel liderando o cumprimento da rigorosa expressão
humana da obra, tornando-a leve e natural como o sopro de um improviso. O
desempenho demonstra o empenho, a autenticidade e fundamentalmente o grande
fascínio de fazer arte.
O
verão está a terminar, seguir-se-ão outros. O céu indicia um agravamento
atmosférico. Os cirros começaram por se pintarem de pôr-do-sol, instalando-se
pouco a pouco durante os dias. Paredes de estratos e limbo-estratos trouxeram
cortinas húmidas à altura do olhar durante a noite. O cheiro da erva seca
molhada, misturada com humidade da maresia, invade o coração de emoções
contraditórias. O frio parece ter-se instado. A ausência de vento acalmou a
superfície do mar. Os cúmulos adensam-se e ameaçam no horizonte. Mas a batalha
desenvolve-se nas camadas mais altas da atmosfera. Estou satisfeita pela
releitura do The Weather Hand Book.
Esta pequena obra lavou as mágoas da História dos homens.
Bartolomeu
Cid dos Santos (1931-2008) comove pela singeleza irónica com que conta a guerra
e as atrocidades das batalhas. Mickey, toma lugar do herói onírico,
metamorfoseando-se em besta de um olhar a outro. Encontramo-lo nos planos mais
próximos de nós, reproduzido como num caleidoscópio ébrio. Não percebemos quem
é quem. Não tomamos partido. Só sentimos a tremenda ironia da ligação entre a
raiva, o desespero e a euforia. Sentimos a poeira do ar inquinado, o ruído
surdo, o pisar dos corpos que não conseguiram vencer a gravidade. Ao fundo as
bandeiras agitam-se no ar. Vitórias ou derrotas são irrelevantes, como nos
jogos infantis... A estranha luta que a ambição, a especulação ou a avareza
provocam, dão o mote para esta obra.
Bartolomeu
Cid dos Santos doou uma grande parte da sua obra à cidade de Tavira, que não
tem mãos para a receber. Deixou-lhe também, através do patrocínio da Casa das
Artes de Tavira, uma oficina de gravura idêntica à sua em Londres, na Slade
School of Fine Art, onde lecionou e trabalhou. Hoje o seu espírito continua a
renascer trabalho após trabalho, residência após residência. A Casa das Artes
de Tavira, quando transborda, vai para a porta da Oficina Bartolomeu dos Santos
(OBS) e senta-se nas escadinhas que ligam a colina de Sant’Ana ao plano das
águas do rio Gilão. Como uma nesga de teatro grego, geralmente, um ecrã faz as
vezes de proscénio improvisado e o patamar da porta da OBS transforma-se em
terreiro da orquestra. Não existe altar porque as oferendas são intrínsecas à
arte.
A
última atividade calendarizada para este verão, Cadavre Exquis, é precisamente a apresentação pública das obras
produzidas a partir de interações diversos autores sobre uma das gravuras de
Bartolomeu, Atlantis de 1971.
Como
o Miso Ensemble, diremos que os itinerários do sal são poderosíssimos, embora
hoje em dia pouco valorizados. Estando num tempo de interrogações a todos os
níveis, a instalação de Ilídio Salteiro, Sala
de Ruth, propõe uma paragem para refletir e pensar os rumos que se
apresentam ao mundo e à arte contemporânea.
Dora Iva Rita, Santa Bárbara de
Nexe, agosto de 2015.
21/08/2015
A Sala de Ruth II
(anterior)
A Sala de Ruth II
A Casa das Artes de Tavira
Há
quem se sente e toque o piano ou simplesmente lhe experimente o som. Há quem se
sente e folheie uma revista. Há quem todos os dias, já noite, lá entre, bebendo
um copo, para ver um pouco do documentário do ídolo da sua juventude holandesa.
Também já vi crianças espalhadas pelo chão a manusearem livrinhos. Há quem
apenas se sente para contemplar melhor as obras expostas na Sala de Ruth. Eu vou lá para encontrar
os amigos que já não são apenas estivais. Tudo isto, para além dos encontros e
atividades calendarizadas.
Contemplar
uma obra de arte é mais do que tropeçar na vertigem do rompimento do
quotidiano. É dialogar com coisas, de aparente natureza inerte, mas que se
revelam agentes ativos, atuantes e extraordinariamente permeáveis a quaisquer
referentes. A contemplação das obras de arte visuais pode ser tão profunda, completa
e gratificante quanto a audição de uma obra musical ou a leitura de um texto
literário. A contemplação é um “aCto” distinto, que nos sugere e orienta para a
experimentação de níveis diferenciados nas abordagens à vida. Se para isso
estivermos disponíveis e, acima de tudo, se o desejarmos…
Há
dois dias que acabei de ler os volumes da História
das Perseguições Políticas e Religiosas de D. Fernando Garrido, acabando
pelas desventuras nacionais entre constitucionalistas e absolutistas. Há dois
serões que me sento na sala da Ruth a observar e a escrever mentalmente sobre
as obras que tem colecionado. Quando tenho dúvidas é através delas que recebo
as respostas.
Marcelino
Vespeira (1925-2002) promete-nos um sensível esclarecimento de sensualidade e
liberdade ‑ a gestação da semente que refulge, vibra e cresce, como núcleo da
obra. A luz-pássaro-pomba que se liberta energicamente denuncia o momento da
eclosão. O desfrute do colo feminino solto de uma qualquer árvore, pronto a
reproduzir-se. Célula. Acto de amor no limite mais essencial do enigma, como
Vespeira sempre desejou a vida.
Pouco
se fala de amor na minha leitura estival. Mas nas entrelinhas adivinham-se
grandes afetos, dignos de gente em extremos limites vitais e que faz grandes
provas disso.
As
cores fortes de Pedro Proença (1962) desfazem-se em nuvens de algodão de feira.
Doces e pegajosas a lembrar narrativas da infância. Espessas, “matéricas” e
fortes. Imprecisa é também a representação e a interação entre os diversos
personagens, desenhando-se uma deambulação nos corredores da irracionalidade,
entre a brincadeira, o ludismo e o drama.
Tão
estranha como a história, descrita na minha leitura, das duas meninas que
brincavam com um gatinho vestindo-o de trapos, restos dos seus vestidos. Assim
brincavam com o animal doméstico. Infelizmente os trapos eram azuis e brancos.
Alguém viu o gatito assim ataviado e as crianças alegres. Alguém as denunciou.
Foram presas, assim como suas mães, e passaram cinco anos nos calabouços.
Decorriam os anos de 1827-1832 na cidade da Guarda.
Imagino
sobre uma tela um duelo de brincar entre João Vieira e João Manuel Vieira (1934
e 1962), pai e filho a pintarem à desgarrada. A paleta vibra e as formas
encontram significâncias perigosas, arremedos que um e outro fazem. Punhais,
pregos, triângulos vermelhos. Jogos perigosos mas fraternais. As cores
vibrantes contrastam, discutem e assumem-se umas perante as outras. Nem uma
letra, nem uma palavra. Mas a máscara existe, e a figura central, de olhos
vazados, é azul…
D.
Miguel perseguia o azul. Tudo o que refletisse a luz nesse comprimento de onda
simbolizava o seu inimigo, portanto deveria ser perseguido, preso, torturado
para que confessasse a infâmia. Eventualmente liquidado. Mulher portadora
inocente de xaile azul a cobrir os ombros, seria por isso incomodada. Nem
aqueles cujos olhos fossem de sua natureza azuis escapariam à fúria do rei
usurpador. Não sei o que pensaria D. Miguel do céu ou do mar… Também custa
acreditar que as fontes da minha leitura sejam verdadeiras… (Mas é geralmente
pela inacreditável irracionalidade da brutalidade que os povos acabam por
consentir que ela lhes invada e se acomode no quotidiano).
Na
Sala de Ruth olhamos para cima do piano e defrontamo-nos com uma obra
monocromática, com tom escuro, equivocamente situada entre o magenta, o violeta
e o púrpura. O suporte é um segmento circular, com a base horizontal
corresponde ao segmento da corda. As linhas são determinadas pelos
altos-relevos que se sobrepõem e apenas se percecionam pela sombra que projetam
no plano que lhes é inferior. Nesse suporte de forma invulgar, Manuel Batista
(1936) evoca topografias de um imaginário racional, como se de maqueta
territorial se tratasse, anfiteatros irregulares sobre praças de geometria
regular. A geometria dos planos mais baixos contrapõe-se inesperadamente às
arritmias das regiões superiores. Destes estranhos anfiteatros podemos antever
o poder do mapeamento e da normalização que pode advir através do conhecimento
com que nos guia. Mas sobre este mapa tridimensional podemos sobrepor diversos
referentes e, seja ele qual for, a coerência será semelhante e o debate
interior riquíssimo.
Existem
livros que foram lidos há tempos que a memória esquece, mas que construíram o
que somos. Gosto de repescar da estante livros já lidos, principalmente quando
desejo fazer pausa daquilo que me comprometi fazer na vida. “Quase como por
acaso”, são chamados de novo à experimentação, a um novo teste, no embate
daquilo que sou com aquilo que cada um deles me pode ainda dar. Ontem descobri ‑
redescobri, melhor dizendo, Mitos e
Símbolos na Arte e Civilização Indianas (Lisboa, Assírio & Alvim,
1997), uma compilação de conferências proferidas em 1942 por Heinrich Zimmer
(1890-1943). Recordo-me do quanto foi importante para me situar corretamente num
entendimento das questões relacionadas com a filosofia oriental. Na sua
releitura, ontem e hoje, aferi se o referencial, que durante estes anos tenho
seguido nestes temas, ainda é coerente com o seu pensamento. Senti-me a reler
um mapa mental antigo… Neste mapa, as curvas de nível são a poética da cultura
e da arte orientais, caminhos por onde se pode ter ainda acesso às praças que
fui edificando.
Em
cima do mesmo piano está uma escultura de Jorge Vieira (1922-1998), pesada do
cobre que a configura. A sombra que a forma projeta, empurrada pela lisura
firme da luz dos leds, contém a mesma
riqueza pictórica da pequena peça, sendo tão expressiva quanto a obra. O que
representa pouco importa de tão genuína ser a forma, podendo-se identificar
seres de qualquer espécie. Têm dos vegetais e dos insetos a elegância da leveza
ao ar, a fluidez de uma cascata ou a rotundidade das pedras trazidas pela água,
dos humanos um incandescente erotismo. Pode invocar um trajeto de glorioso amor,
uma qualquer vitória revolucionária, veleiro de dois mastros ao acostar ao
destino.
Há
momentos assim, plenos, sobretudo ligados à arte. Aqueles que se constituem de
música são os mais eficazes. Na vida quotidiana ganham-se dificilmente, mas
perdem-se muitíssimos mais no limbo das hipóteses menosprezadas. Desses poucos
momentos que nos chegam, alguns existem durante o sono, no sonhado e,
frequentemente, não são reconhecidos. Outros nos diálogos, nas leituras, no
sonho dos livros, das escritas e das ideias. Estes momentos são salvíticos e
sempre transcendentes. Daí haver quem acredite serem obra de divindades. Mas
são apenas Arte manifesta e a particularidade do que a qualifica como tal.
Dois
retratos angulam-se num dos cantos da sala da Ruth, um formado pela memória
icónica dos despojos na obra de Costa Pinheiro (1932), outro pela intensidade da
ingenuidade que transparece dos rostos. Reconhecer o outro pelo hábito é
recusar de certa forma a profundidade do ser. Apresenta-se pois como ofício
indireto do retratar, um equívoco entre a paisagem, a memória e o carisma.
Institui-se mais pelo desígnio descritivo do que pela essencialidade de ser
criatura. Ivo reconstitui-se, quase perdido de tão ingénuo, na sua autorrepresentação.
Oferece-se assustado por quem o olha. Abdica da postura empática, renunciando
aos prováveis diálogos que atravessarão a representação do seu rosto. Estranho
o drama de se retratar recusando o embate da comunicação elaborada. A cor ilumina-o
centralmente. O olhar retrai-se. Um retrato que foge sem se retirar. De outra
forma, diferente da utilizada por Costa Pinheiro, apenas retraindo-se até ao
não mais saber de si.
Uma
outra leitura de férias foi um pequeno e completo The Weather Hand Book. Escrito por Alen Watts (Shrewsbury,
Weatherline Books, 1994), permite-nos organizar o nosso raciocínio frente ao
céu e perceber o que preconizam as formas, as cores e os movimentos do ar,
quando remetido para o céu e para as nuvens. Os indícios são, provavelmente, os
mais fortes argumentos para se tomarem decisões acertadas. É bom poder perceber
se amanhã vai estar estio ou se de madrugada vai haver borrasca. É bom e dá
segurança, aquela que dantes a cultura tradicional tinha e que permitia a
confiança das trocas sem colonialismos.
O
Nuno Calvet (1932) dá-nos a maioridade estética através duma prova fotográfica.
O que parece improvável é realçado. É como deixar de ver figuras imaginárias
nas nuvens e passar a olhá-las objetivamente, exatamente aquilo que são. É
descobrir o fascínio estético sem efabulações nem fantasias. Mas deixando a permissão
para todas as possibilidades de autenticação icónica.
Pela
observação dos indícios, quando estamos demasiado perto, não nos podemos
aperceber que aí vem uma grande tempestade. Como The Weather Hand Book, os períodos de paragem do trabalho são
fundamentais para perceber o todo, onde e como nos integramos.
Do
mesmo modo que na Sala de Ruth, a colecionadora de arte que expõe um conjunto
de trinta obras na Casa das Artes de Tavira, uma fantasia-fundamento de
deambulação estival pela contemplação estética das artes visuais. “Quase como
por acaso” a Sala de Ruth abre as
suas portas como uma opção redentora de muitos conceitos.
Dora Iva Rita
20/08/2015
Sala de Ruth - Half o'clock
Concerto com Nuno Ferreira na guitarra e Patrícia Proença na bateria, na sala da Ruth, na Casa das Artes de Tavira, no dia 20 de Agosto
18/08/2015
A Sala de Ruth - Joana Bertholo
16/08/2015
Ruth's Room
Ruth’s Room
Collector
Room
Thirty years in 2015 correspond exactly to fifteen
years of the second millennium and another fifteen of the third. The
differences between millennia are larger and more evident than other turning
points, like that of the centuries, and the transition period is slower, with
envisaged doubts and uncertainties.
Facing the uncertainties of the worlds we’re left only
with the preservation of knowledge. This process of passage from one cycle to another
sets a backdrop that highlights the overall scope for the collection and the
collector; the gradual conscientious-ness of this process has set the plot to
celebrate the thirty years of existence of the Casa das Artes de Tavira.
The act of collecting corresponds to the safeguarding of knowledge with the
purpose of the survival as much in the present as in the future. It becomes the
substance that saved Prospero (William Shakespeare) on the island where he is
banished, it is the unjustifiable desire to possess that justifies the life of
the Cavaliere (The Volcano Lover, Susan Sontag), it is the daily livelihood clutter
shown at the Helly Nahmad Gallery (Frieze Master, November 2014), it is the
hypothesis of making a world from reflections, from introspections, from
debates.
In the space of the Casa das Artes is revealed
a work room, a living room for receiving friends, a reconstruction of a room
belonging to a collector of Dutch origin, presently living in Tavira. A space
enabling started yet always-unending conversations, a space of intimacies,
alone or in-group, a space for writing, for audition and for contemplation. A
space favouring the start of always unended conversations, a space of
intimacies, alone or in-group, a space for writing, for audition and for
contemplation.
Beyond the books, photographs of memories, flyers,
posters and travel postcards, and a very occasional furniture, this space with
an art collection unravels itself, composed by painting, drawing, prints,
sculpture, photographs and video, mirroring a great fluency and closeness with
art and Portuguese artists, passionately constituted over the last thirty
years. The works have gradually been installed through every corner of the
room, at times profusely, proposing the sentiment of spirit that sees in art a
fundamental object for discovery of other worlds. This collection obviously
constitutes her reason for being a person and her primordial contribution for
the expansion of the sense of humanity.
The ambiguity and the doubt concerning the veracity of
what lays exhibited generates restlessness in the observer, pointing at their
own condition as collector, of whatever subject.
Collecting differs from collecting our own
contemporary art. This latter mode requires an audacity equaling that of the
artists because, through the always uncertain selection based on a specific set
of assumptions, collectors dare define art. That is how Ruth constituted an
extensive collection that beyond acuity, study, and research, reveals a
cultural complicity with the place she has chosen or elected to live and reside
and with all those that during these thirty years have passed close to her.
Who is the
collector?
•
Ruth was born
in Volendam, in the Netherlands, in 1953.
•
She completed
with distinction the Higher Level Piano Course at the Amsterdam Conservatory in
1974.
•
She married a
visual artist, a political exile, from Tavira, where they came to live in 1975
and from whom she divorced in 1984.
•
Since 1980
she teaches music at the Faro Conservatory, simultaneously developing an
international musical career on various concertos.
•
Ruth is an
assiduous presence at Casa das Artes since 1985 actively participating in its
activities, as an artist, as a teacher, as a visitor and as a collector.
•
Throughout
these thirty years Ruth has gathered an interesting collection of photography,
drawing, painting, prints and sculpture with which she lives in a house in the
Algarve coastal hills. It is a part of that house, her living and reception
room, and part of that collection that here and now are reconstructed and
exhibited.
The Room
Her house is a place of meeting many friends,
especially on warm summer evenings, after dinner and an intense day of heat and
beach. During the eighties many artists passed through her house, looking for
sustainable cultural alternatives from their world visions. The fascination in
discovering a country wanting in cultural and artistic dynamics and the
possibility of being able to participate towards its cultural growth were the
main causes that stimulated her approximation to Tavira.
But today Ruth is not at home. She left her home with
friends and guests and left somewhere in a hurry... A neckerchief on the chair,
a forgotten musical score, an open book and a nearby pencil…
Where has she gone?
The room is at times full, at others apparently empty,
filled with art. Looks like they are dinning, but the room awaits them …
It is night…very late.
Summer night in Tavira, the most pleasant place in the world. Where day and
night are the same. That is what has been keeping her and she knows that is
precisely why her presence is indifferent. She is always present even when she
is absent.
Throughout her life, connected to musical and cultural
activities, she was close to the visual arts, acquiring works, without the
elementary intuition of commercializing them, but above all with the desire to
enjoy them aesthetically, to be accomplice and to be in the discoveries of
others, finding glorious solutions for every day’s triviality.
Aware that things of art and aesthetics serve to
activate consciences, Ruth’s room recreated in CAT, populated with works by
artists she knew and that she convivially related to. Ana Hatherly, Bartolomeu Cid do Santos, Catarina Botelho,
Costa Pinheiro, Fernanda Fragateiro, Isabel Sabino, Ivo, João Hogan, João Onofre, Jorge Martins, Jorge Pinheiro, Jorge Vieira,
José Faria, Julião Sarmento, Júlio Pomar, Manuel Batista, Manuel João Vieira, Margarida Palma, João Vieira, Miguel Proença, Nuno Calvet, Paula Rego, Pedro Cabrita Reis, Pedro
Calapez, Pedro Proença, René Bertholo, Samuel Rama, Susana Themlitz, Vespeira and
Xana, represent the refuge, the house nucleus, her habitat, where everyday life
and life itself reconnect.
15/08/2015
14/08/2015
A Sala de Ruth - René Bertholo
RENÉ BERTHOLO
Sem titulo
Serigrafia sobre papel, 1985
«Tal
como o trabalho de René Bertholo (1935) onde por vários momentos, que podem ser
um mesmo nas suas diversas possibilidades, se desencontra a vida consigo
própria, reencontrando várias possibilidades de se reencontrar. A estranheza de
se poder com os mesmos dados, modificando um pouco, obter-se resultados
diferentes. Ou de se manobrar as vontades ou manipular os resultados através de
pequenos pormenores». (Dora Iva Rita, 2015)
13/08/2015
12/08/2015
11/08/2015
10/08/2015
09/08/2015
08/08/2015
07/08/2015
06/08/2015
05/08/2015
A Sala de Ruth - Isabel Sabino
ISABEL SABINO (1954)
Branca, anuncie aqui, 2011
Acrílico sobre tela, 30 cm x 40 cm
«Uma
pequena pintura de Isabel Sabino (1955), aparentemente levíssima como o ar,
como a paisagem que se olha da estrada à velocidade com que hoje se percorrem.
Colagem de vozes e imagens, frases ditas, pensadas. Momentos. Também aqueles
que passam pelo pensamento, trazidos pelo vento… O grande placard de publicidade vazio. Pois, e se aqui a Branca se anunciasse.
Pois… O acrílico com um cromatismo a imitar as aguadas de algum apontamento de
diário gráfico, aparentemente descomprometido. Rigoroso: o pincel deixa cada
linha no seu lugar geométrico, cada mancha no seu espaço certo, a luz e a
sombra determinam uma espacialidade minuciosa. Uma alusão dramática, profunda e
irónica á paisagem da sociedade atual. Rapidamente. Rigorosamente.
Refinadamente». (Dora Iva Rita, 2015)
04/08/2015
A Sala de Ruth versus História das Perseguições Políticas e Religiosas
Quase como por
acaso, a minha leitura de férias está a ser a História das Perseguições Políticas e Religiosas de D. Fernando
Garrido. Composta por três volumes, editados em 1881 (Francisco Arthur da
Silva, Lisboa) e versando sobre os séculos antecedentes, estes livros são,
infelizmente, de uma atualidade evidente.
Também,
quase como por acaso, há uma exposição que estou a visitar frequentemente
durante este verão – A Sala de Ruth –
na Casa das Artes de Tavira.
A
pretexto das inúmeras exposições estivais que, ao longo dos anos, foram
construindo por ali uma estrutura cultural comemorando-se este ano pela
trigésima vez, imaginou-se uma
colecionadora que incorporasse todos aqueles amadores da Arte, que a
colecionaram, debateram, analisaram e contemplaram – que a viveram. Na Sala de Ruth é tudo isso se equaciona e
que, ao longo das noites quentes dos fins de semana de junho, julho e agosto, até
5 de setembro, se pode desfrutar informalmente, como quando se visita uma amiga
intelectualmente pródiga.
A minha leitura
estival é oposta. É construída de opressão, cinismo, iniquidade, vexames,
violência. Violações de todo o género. Ostentação e ganância. Um poder desumano
sobre o semelhante. Tudo em nome de grandes verdades e grandes mistérios para
enganar, de grandes artes de humilhar… tudo em nome de deuses ou de homens,
todos sem nomeação possível de tão baixos e vis. E tantas vítimas indefesas, a
maioria com grande nobreza de caracter, gente íntegra!
Na sala de Ruth
contempla-se obras de vários autores contemporâneos. São trinta como os anos,
embora tivessem sido muitos mais aqueles que passaram pela Casa das Artes de
Tavira. Ana Hatherly, Bartolomeu Cid do Santos, Catarina Botelho, Costa
Pinheiro, Fernanda Fragateiro, Isabel Sabino, Ivo, João Hogan, João Onofre,
Jorge Martins, Jorge Pinheiro, Jorge Vieira, José Faria, Julião Sarmento, Júlio
Pomar, Manuel Batista, Manuel João Vieira e João Vieira, Margarida Palma, Maria
José Oliveira, Miguel Proença, Nuno Calvet, Paula Rego, Pedro Cabrita Reis,
Pedro Calapez, Pedro Proença, René Bertholo, Samuel Rama, Susana Themlitz,
Vespeira, e Xana.
A vida é um
quase por acaso. A arte da civilização mais a montante da nossa está a ser
destruída. Onde surgiu a escrita, o livro, o código do direito dos vencidos, a
observação do universo, altos valores vilipendiados mais de vinte e cinco
séculos depois! Triste. Muito triste. Relevos e esculturas que julgávamos
eternos foram destruídos à picareta. Em nome de barbáries idênticas que são a
causa das palavras amargas que leio com amargura nos três volumes da minha
leitura de férias.
Na Sala de Ruth
a Humanidade redime-se pela Arte. Como sempre o único caminho. O livramento do
espírito está na dimensão artística, em qualquer das suas vertentes.
Uma
pequena pintura de Isabel Sabino (1955), aparentemente levíssima como o ar,
como a paisagem que se olha da estrada à velocidade com que hoje se percorrem.
Colagem de vozes e imagens, frases ditas, pensadas. Momentos. Também aqueles
que passam pelo pensamento, trazidos pelo vento… O grande placard de publicidade vazio. Pois, e se aqui a Branca se anunciasse.
Pois… O acrílico com um cromatismo a imitar as aguadas de algum apontamento de
diário gráfico, aparentemente descomprometido. Rigoroso: o pincel deixa cada
linha no seu lugar geométrico, cada mancha no seu espaço certo, a luz e a
sombra determinam uma espacialidade minuciosa. Uma alusão dramática, profunda e
irónica á paisagem da sociedade atual. Rapidamente. Rigorosamente.
Refinadamente.
No meu país
oferece-se ilhas da infelicidade grega como prenda de casamento… A Grécia é a
alma da Europa. A atmosfera e o mar Egeu deveriam ser o ar e a água que se
deveria respirar e beber na Europa. A Grécia é o pensamento e o sonho da
Europa. Não pode ser comprada, vendida, transacionada, humilhada, vexada, agredida.
Existe. É!
Na sala de Ruth
a gaveta do Pedro Cabrita (1955) excede-se, como sempre acontece nas suas
obras. E ainda bem que é assim. A baba da tinta “aconteceu” naquela gaveta-mala-objeto
incerto com um à-vontade de mestre. A trincha agarra a tinta na proporção
certa, a mão de gesto controlado, cerca-se do suporte, e aparentando um só
golpe, lento, preciso, duradouro no seu ápice, convocando todo um esforço da
atenção daquilo que se entende por momento artístico, remata o movimento e a
obra. A cor ilumina de súbito a textura da madeira. O objeto anterior é eleito
obra de arte, convocado entre os demais. A finalização será pouco mais, um
suporte ali, um puxador acolá, uma simetria, duas diagonais. Composição. Uma
obra clássica no seu mais perfeito dinamismo.
A estruturação
das sociedades é necessária para regrar comportamentos. Estrutura-se mediante
ideias, ideologicamente. Termo que hoje aflige muita gente. Não os gregos
democráticos, a maioria. Da Ágora só a arte (Abakonowicks) ainda teima em
falar. A globalização implementou a plutocracia, coisa sem rosto, sem vergonha.
Mas que ainda não se assume como ideológica.
Um
pequeno trabalho, uma parcela de um todo, uma vírgula de um discurso
transparente, vago e rapidíssimo. A espátula, veloz como golpe de cutelo, de
Pedro Calapez (1953), obriga a contorcer plásticamente contra o suporte as matérias
cromáticas, até que permitam a transparência, paradoxos aparentes,
descontextualizados do tempo da obra-mãe. O afastamento da parede faz com que a
peça pareça suspender, como se respirasse naquele momento e aquele espaço estivesse
de facto repleto de ar. Parece ainda estar viva. Vertigem num lapso de momento.
O que sentem as
vítimas inocentes quando torturadas até à exaustão sem que saibam do que as
acusam. Vertigem num lapso de momento.
Voltando
sempre à Sala de Ruth agora para
olharmos o Almoço do Trolha de Júlio
Pomar (1926). Podemos ver nesta obra histórias de vários náufragos…Mesa-mar
onde, meia comida, como barco sobrevivo a grande tormenta, a fatia de melancia
repousa, com arribas funestas, de picos agrestes, no horizonte. Em planos mais
próximos, vai a colher à boca do menino, como barquinho de ternura, qual
salva-vidas de um pai que dá tudo o que tem, náufrago da vida, de um fascismo
cor-de-rosa pálido, em que dos pés da mãe se pressupõem novo naufrágio, enquanto
um tem “bote” o outro, descalço, é como se fosse náufrago caído, enquanto a
pomba assiste e espera que as águas desçam, para encontrar pouso em terra e
trazer essa nova… Outra leitura, outro entendimento, a mesma obra. A obra de
arte está sempre aberta.
A espera é contínua
que o tormento e o medo permanente terminassem. Mas durante séculos vai
permanecer a lei do mais forte. Júlio Pomar realiza este trabalho em 1951. O
fascismo vai perdurar mais 29 anos… Como Júlio Pomar e muitos outros
antifascistas, D. João IV e Marquês do Pombal não conseguiram vencer a batalha
de deter a descomunal injustiça, desmedida ganância e a execrável ignomínia
perpetrada pela Inquisição em Portugal.
Mas
Hogan(1914) rejubila em 1974 e vem para a cidade dançar na praça. Tudo exulta a
vitória. Toda a natureza se abre. Sai das suas serranias, ravinas, precipícios,
e reconstrói a cidade de natureza, monumento e vitalidade. Dos planos maciços
transcende-se para outros completamente rarefeitos. Torna-se moço imprudente,
por momentos!
Tão breve a
vitória, como também nunca pensou ser a de D. João IV sobre a inquisição
portuguesa, pois, assim que faleceu, foi retirado do caixão e, depois de
despido das suas vestes reais, foi excomungado por ter recusado ficar com os
bens confiscados às vítimas da Inquisição, restituindo-os às suas famílias.
Rapidamente
nos encontramos defronte a outro grande senhor da arte contemporânea. Assertivo,
Jorge Pinheiro (1931) golpeia severa e rigorosamente o suporte como se
respondesse à questão colocada por Júlio Pomar. Dá um murro na mesa, acaba com
os náufragos, institui correção, luz que se faz pela cisão provocada por um
raio de treva. Ou a ironia geométrica da autonomização do barrete cardinalício,
uma e outra face de uma mesma verdade da arte.
De um só
triângulo se formavam as vestes dos carrascos inquisitoriais. Todos cobertos
para não serem reconhecidos e nada terem de humanos, apenas se lhe rasgavam os
orifícios no rosto para os olhos.
Ana
Hatherly (1929) tece cartas de amor com finos fios de tinta. Amor indizível.
Enlevos têxteis não descritíveis. Talvez a peça mais abstrata de todas da
virtual coleção de Ruth. Murmúrios constantes, permanentes, obsessivos. A duas
vozes. Um diálogo entre teia e urdidura que constrói a tecedura. O mundo. E a
comunicação do mundo. A Web também.
Em nome da
verdade, de um deus, e de um direito, desenvolveu-se um tal emaranhado que
todos têm medo da teia da Inquisição. Os jogos de poder, os compromissos, as
chantagens, são tantas que é dificílimo fugir-lhes, com a agravante de que o
medo infligido provoca falsas declarações, delações, incriminações e a
oportunidade gera a vingança, a avareza e a ganância. É um conjunto de grande
complexidade e que é cada vez mais ampliado nesse sentido para que se torne
incontrolável, imbatível e infalível.
Tal
como o trabalho de René Bertholo (1935) onde por vários momentos, que podem ser
um mesmo nas suas diversas possibilidades, se desencontra a vida consigo
própria, reencontrando várias possibilidades de se reencontrar. A estranheza de
se poder com os mesmos dados, modificando um pouco, obter-se resultados
diferentes. Ou de se manobrar as vontades ou manipular os resultados através de
pequenos pormenores.
Aquilo que os
governos vendidos a interesses exteriores manifestam para convencerem os povos
a permitirem que atuem em favor dos interesses de alheios. Os corruptos nunca
tiveram vergonha… Nem os verdugos.
Em
Miguel Proença (1963) podemos ser projetados em dois mundos. Um macro cósmico e
outro microcósmico. A decisão será nossa. Mas as sombras estarão sempre lá e
acompanharão ou o vírus ou o planeta.
A Humanidade
fica de permeio. As sombras aparecem sempre. Aparecerão sempre. Já não tenho
dúvidas. É intrínseco à natureza humana. Salve-nos a Arte. A Sala de Ruth está em Tavira precisamente para isso.
A
Ruth plasma todos os colecionadores, todos quantos amam a arte. Mas Ruth
aparece-nos como figura cautelar. Uma das três mulheres onde assenta a
genealogia das religiões do livro. Ruth ensina-nos a fraternidade, a tolerância
e a integração do Outro, do povo diferente, da cultura diferente. Traz até nós
conceitos de partilha com os demais, como o da respiga, tão conhecido dos
agricultores tradicionais, que depois do varejo e da apanha, permitem aos mais
pobres, o rabisco, uma segunda apanha.
O
debate, a partilha da arte por parte dos colecionadores amadores, abrindo as
portas das suas salas em pequenas tertúlias ou em museus, é um pouco esta
imagem de dádiva, troca e partilha. Daí a importância do amor não opressivo nem
obsessivo, daqui a importância da Sala da
Ruth.
Mas
A Sala de Ruth também é uma obra em
si mesma. É uma instalação do pintor Ilídio Salteiro que comissariou a
exposição comemorativa do trigésimo aniversário da Casa das Artes de Tavira.
Fundando-se esta em torno de amadores da arte, colecionadores e criadores, o
pintor concebeu uma sala de colecionador, criando em grupo um perfil que
aglutinasse esse universo. O autor também pretendeu resgatar o conceito
expositivo das paredes brancas e acéticas das galerias pós-modernistas, onde o
principal objetivo é a descontextualização da obra, valorando-a apenas pela
cotação do mercado. A salvaguarda de outros valores e as inúmeras interações,
muitas delas subjetivas, por isso impossíveis de referenciar, é importante para
uma humanização verdadeira da obra de arte e para um debate verdadeiramente
alargado.
A Sala de Ruth
abre as suas portas como uma opção redentora de muitos conceitos.
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