Personagens Insustentáveis
de António Garcia Lopez
Em Personajes Insostenibles, temos uma exposição de António
Garcia Lopez que traz para o debate no mundo da arte a relação entre estética e
temáticas sociais, ambientais e artísticas. Verifica-se também, perante o seu
modo de produção artística, que a colagem não é apenas uma tecnologia para
realizar composições pictóricas. Nele, ela é um modo de reutilizar o manancial absolutamente
excessivo de imagens que diariamente nos assediam com propostas de infindáveis
produtos e de muito discutíveis modos de estar e ser. E também nos mostra, muito
claramente, uma visão de um mundo construído em torne de uma sociedade híperconsumista,
embriagada pelo consumo de futilidades e pateticamente aderente a todo um
perigoso universo de efemeridades que colocam em risco a sociedade humanista de
hoje que tanto nos custou a construir. Finalmente sentimos em toda a sua obra
um forte apelo para que tenhamos uma atitude mais sustentável nos nossos atos.
São estes três pressupostos que têm sido o alimento essencial da
obra de AGL nos últimos anos. Os anos em que nos conhecemos e nos quais estes
temas foram motivo de conversas, debates informais, troca de opiniões e
cumplicidades em projetos artísticos e curatorias, sempre que as circunstâncias
dos momentos os propiciaram, nos espaços de muitas instituições entre Lisboa,
Múrcia e Valencia.
Pode ser constatado nos trabalhos expostos que AGL aprofunda a sua
perspetiva de visão para o mundo, continuando a exploração da estrutura compositiva
do género do retrato materializado através da colagem que, revelando ter
capacidade para subverter a tradição renascentista, também consegue realçar um seu
modo dadaísta de ser, fazer e ver o estranho espaço que ocupamos no tempo
presente (Freud, 1919).
O processo da colagem, tem sido o seu grande recurso desde 2000, contabilizando
um grande número de exposições. É um processo de criação artística que resulta
de uma rigorosa investigação em arte onde se referenciam ascendências artísticas,
culturais e conceptuais de artistas como Josep Renau (1907-1982) ou Francisco Goya
(1746-1828), nomeadamente a obra gráfica, dando continuidade a uma escola de
pintura espanhola genuína quanto às suas características expressivas.
Como escreve AGL na nota
de imprensa para esta exposição as suas colagens …son literalmente
“re-collages” que pretenden componer y explicar el mundo que nos rodea, es un
laboratorio para las ideas, un campo de batalla sin fin, la suma de estratos y
capas de nuestra historia pero también de la “basuraleza” que hemos generado,
una forma de reinventarse a partir de la propia experiencia, es en definitiva
lo que ha venido haciendo la pintura a lo largo de toda su tradición y lo que
la mantiene tan presente y tan viva en el resto de manifestaciones artísticas»…
Mas nestas obras, sob a designação de Personajes
Insustentabiles, AGL quando utiliza a sua própria expressão pictórica como elemento
de composição que sugere uma sensação de espaço expressionista e gestual ao
serviço dos enquadramentos ou contextualizações de todo o conjunto, salienta um
elemento pictórico novo: a textura como matéria. Sobre espaço vão sendo acumulados
recortes de muitas imagens com outras posições e escalas, desempenhando o papel
de protagonistas dos espaços e das narrativas como personagens ou atores do
mundo contemporâneo. Um mundo onde o valor das coisas já não é determinado
pelas dimensões humanistas, estéticas, culturais, antropológicas ou
sociológicas, mas é apenas determinado pelo valor atribuído por um sistema
regulado pelas leis da oferta e da procura: o dinheiro.
Antonio García López é um artista / pintor que
desenvolve a sua atividade entre Múrcia e Valência, que deixa perceber na sua
obra um conhecimento culto do classicismo hispânico e europeu sob o desígnio de
uma visão sarcástica, mordaz, crítica e interventiva sobre a distopia da
sociedade contemporânea globalizante e autocolonizadora. Isto corresponde a um
modo de estar muito especial porque coexiste com o tempo da apologia do
entretenimento e da efemeridade das coisas, dos atos e dos compromissos. Num
tempo em que impera cada vez mais uma inteligência artificial neoimperial, governadora
global de todos nós, a atitude estética do AGL torna-se relevante pela coragem
do olhar, do ver e do decidir, sabendo fazer uso do pensamento humanista
implicado na criação artística sem efeitos digitais fúteis.
Apela militantemente ao nosso entendimento em vez de
apelar apenas ao olhar. As obras que nos apresenta são pensamentos
materializados como se fossem primeiras páginas de muitos livros abertos prontos
a serem partilhados com o outro, ao qual se exige que, para além desse olhar
primeiro, use a sua aptidão para entender e fazer juízo sobre o seu próprio
universo. Cada obra é por isso um médium com a função de promover mais pensamentos,
mais ideias e mais opiniões, mais energia. Um médium feito com maestria do
domínio das artes de fazer formas plásticas, e com acutilância critica dirigida
para a paisagem sociológica que vivemos.
Em El Paracaidista (2020) temos uma composição
protagonizada por um barrete vermelho a servir de paraquedas a um pedaço de um
rosto de alguém que parece exprimir uma simpatia afável. Nesta obra somos
levados a pensar nas estratégias subliminares que se artilham, através de
apelos necessidades de consumo absurdas dos quais a figura do Pai Natal
é uma delas, com o objetivo se submeter um território ou uma cultura a outras formas
de colonialismo.
A facilidade com que obtemos imagens figurativas,
abstratas, fantásticas, reais ou ficcionadas é estonteante. É igualmente
estonteante a diversidade de meios existentes para que as obras feitas adquiram
corpos diversos através de remediações sucessivas (David Bolter,
2000).
Todas estas remediações possíveis nos arrastam para um tempo em que imagem e artes
visuais se confundem com pintura. Momentos em que pintura se confundo com uma tecnologia,
ou seja, momentos em que olhar o mundo não basta para o entender. Inteligência,
raciocínio, opinião ou razão são recursos humanistas absolutamente
indispensáveis para a sobrevivência universal.
O formalismo estruturante da sua obra, marcado
culturalmente pelas raízes da sua formação, está bem sustentado com todos estes
Personajes
Insostenibles, intitulados de um modo limpido: el sostenible,
el reciclado, los ecológicos, la última cima, alta resistência, los insectos,
consumidores compulsivos, la criada ou Noé y su arca. Sustentabilidade,
reciclagem, ecologia, consumo ou ameaça apocalíptica são os assuntos que hoje condicionam
os nossos comportamentos mais básicos. Personagens construídas por colagens de
um rigor expressionista que nos remete claramente para duas questões: a
primeira será a colagem como primórdio essencial da Pintura a qual se
concretiza apenas pela capacidade que os médiuns (seivas, resinas, óleos ou
químicos) têm para colarem outras matérias (pigmentos, cor e textura) sobre
muitos suportes (Salteiro, 2018). A segunda será a
assunção da expressão visual do pensamento que, para se formalizar, recorre a todas
as tecnologias disponíveis.
Mas a expressividade maior, plástica e conceptualmente,
que se manifesta claramente nas obras de AGL advém da sua identidade de
valenciano marcado pelas ricas manifestações tradicionais das Fallas. As Fallas
são uma tradição com raízes medievais que celebram o equinócio da primavera
através de queima de obras de pintura / escultura extremamente críticas da
sociedade local regional nacional ou mundial, tendo como destino fazer uma
grande fogueira com todas elas. Esta festividade anual serve para se queimarem
os fantasmas de todos e de cada um, num momento partilhado coletivamente, com
muitas interpretações críticas sobre a sociedade.
AGL usa o corte, a colagem, a sobreposição e o
confronto, agrupando imagens coletadas em revistas e jornais em composições
imbuídas de uma evidente teatralidade fotográfica e televisiva. Depois articula
espaços compositivos onde se encenam narrativas comuns do dia a dia,
transformando coisas e personagens em marionetas de um ecossistema que atrofia
e desvaloriza cada vez mais os pensamentos livres.
Vale a pena ver, refletir e acompanhar os trabalhos
de Antonio Garcia López, porque eles demarcam-se da irresistível tendência para
considerar a arte contemporânea com tendência global alinhada.
Ilídio Salteiro, 2023
Algumas referências:
David Bolter, G. R. (2000). Remediation,
understanding new media. Cambridge Massachusetts: The MIT Press.
Freud, S. (1919). O Estranho. Obtido de
https://conteudos.files.wordpress.com/2016/02/ensaio-o-estranho_freud.pdf
Salteiro, I. (Janeiro Março de 2018). Antonio García
López : colagem e politica como processo de pintura. Estúdio, 9(21), pp.
60-66. Obtido de http://hdl.handle.net/10451/38335