14/01/2018

Prospeção



Prospeção
Por Ilídio Salteiro

… a ilha está cheia de ruídos sonoros, de sons e de músicas suaves que agradam e não fazem mal. Às vezes, mil instrumentos ressoam-me aos ouvidos; outras vezes, são vozes tão doces que, se estou acordado depois de um sono prolongado, me tornam a adormecer; então, em sonhos, parece-me que as nuvens se abrem e vejo riquezas sem conta que vão chover sobre mim; assim é que, quando acordo anseio por sonhar outra vez…. (Shakespeare, Tempestade)


A Pintura faz-se do ver e do partilhar. Dito deste modo, a Pintura é apenas visão, versão, aparição, desvendamento ou descoberta. E o pintor é aquele que a dá a ver, que a põe a descoberto e a partilha aos outros!
Consideramos a Pintura como aquilo que ─ contrariamente ao que “alguns” pensam e argumentam hoje sobre arte ─ cura, revoluciona, rompe e corta! Encaramo-la como aquilo que não pode ser reduzido a coisa cenográfica, temporária! Nem ela mesma como objeto, nem o lento processo de investigação que a originou, nem o arriscado processo de prospeção sucessiva que envolve, desde que não estejamos a falar de um mero exercício de habilidades tecnológicas ou outras. É, acima de tudo a formalização de pensamento vivo, humanista, que reforça a força da esperança que permanece depois de tudo findar ─ com reinícios constantes.
O conjunto de óleos e acrílicos sobre tela, composto por paisagens e territórios povoados com sinais de vida, reunido neste livro sob a titulação de Faróis e Tempestades, corresponde a uma seleção de treze obras realizadas durante 2017 em torno de três eixos conceptuais definidos por livro antigo, coleção e biblioteca. Estes “eixos” têm de comum o facto de nos oferecerem possibilidades de ordenação do caótico, do confuso ou do movimentado, ou simplesmente de tudo aquilo que se encontra sujeito a eternas mudanças. Dominam as tempestades (Shakespeare s.d.).
A génese da civilização pré-diluviana em Babel, numa torre única e universal, no Génesis (Crumb 2009), marca o início mítico de uma cultura ocidental, onde o desejo de globalização e de centralismo, revelando-se ser desmesurado, conduz a civilização para a multiculturalidade universal que conhecemos. Esta ideia de Babel foi o ponto de partida destas obras, entendida como ascensão e queda, como uma força globalizante em confronto com a diversidade, ou seja, em confronto com as grandes dicotomias que vão tecendo o nosso quotidiano. Uma ideia de Babel como arquitetura numa paisagem com capacidade para simultaneamente agregar e disseminar, tal qual a linha de água e o ritmo das marés junto à costa, umas vezes com grandes amplitudes e outras com amplitudes mínimas. Uma ideia que nos conduziu naturalmente em viagens por paisagens mentais de territórios nunca vistos, terras incógnitas, disponíveis para as múltiplas descobertas.
Adquirindo corpo a ideia de ilha, de costa, de maré ─ de linha entre solido e liquido. Uma linha determinante para o desenho de ilhas aparecidas, ilhas de terra sem nome, longínquas, como aquela que Trezenzónio, um monge galego, avistou do alto da torre de Hércules na Coruña no século VIII e descreveu como sendo a Grande Ilha do Solstício. Uma ilha desenhada no horizonte pelos raios do sol nascente, com um templo-torre, dedicado a Santa Tecla. Uma imagem de um lugar distante, uma ilha paraíso onde tudo é perfeição e harmonia e onde não existe tempo (Lucas, 1991).
Partilhamos estas palavras sobre algum do pensamento que acompanhou a execução destas pinturas, íntima e silenciosamente, prospetando naqueles passados assinaláveis e apenas aparentemente longínquos ─ Babel, Grande Ilha do Solstício e Tempestade ─ os caminhos que todos nós vamos percorrendo hoje, como descobridores do futuro, curando a sociedade da doença da incivilidade, revolucionando paradigmas, rompendo preconceitos e cortando e colando as boas coisas em códigos renovados e atualizados.
  
Referências
Lucas, Maria Clara de Almeida (1991). “Insula Solistitionis: uma ilha iniciática”. In Yvette Centeno e Lima de Freitas, A simbólica do espaço: cidades, ilhas, jardins. Lisboa: Estampa, pp. 73-85.
Crumb, Robert (2009), The Book of Genesis, Nova Iorque: W.W. Norton &Company Ltd.

Shakespeare, William (s.d.). A Tempestade. Porto: Lelo & Irmão Editores.

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