Ilídio Salteiro, Cidade, 1998. Óleo sobre tela, 40x120cm
02/12/2018
15/10/2018
1º Congreso Internacional ARTE, NATURALEZA Y PAISAJE EN EL MEDITERRÂNEO
Em Ojós, uma pequena cidade na região norte de Murcia, em
Espanha, realizou-se nos dias 11, 12 e 13 de outubro de 2018 o I Congresso
Internacional Arte, Naturaleza y Paisaje en el Mediterrâneo (https://www.artenaturalezapaisaje.com/).
No seio de uma paisagem surpreendentemente expressiva,
simultaneamente agreste e fértil, permanente mente desenhada por sombras de
montanhas projetadas sobre vales, sinalizou-se o Mediterrâneo como espaço de
limites e fronteiras (Nélida
Mendoza, Colgando
Paisajes), falou-se dos elementos naturais em confronto com
conceitos artificias de paisagem fabricada (José María Egea Fernández, Paisaje agrario e identidad territorial), referiram-se
soluções de educação no formal no âmbito da relação professor – artista (Lucia Loren, Arte, paisaje y educación
desde un prisma eco-social), sublinhou-se a importância dos
pequenos núcleos museológicos (Carmen Berrocal Caparrós, Street Art y Patrimonio. Campaña de divulgación del patrimonio
paleontológico de Cueva Victoria a través del arte callejero en el paisaje
urbano de la Diputación de El Beal), salientou-se o valor
humanista da ação artística no contexto da cultura ocidental e do pensamento e
arte contemporâneos apresentando-se soluções em curso para a sustentabilidade
dos patrimónios naturais e paisagísticos (Giacomo Bianchi, Il progetto di Arte Sella ed il suo impatto sul territorio" ou João Castro Silva, La Luzlinar y el Jardín de las
Piedras. Un proyecto de actuación artística a cielo abierto).
Dias intensos de diálogos e apresentação de muitas ideias e
projetos que visam consolidar, em torno do Mediterrâneo, os valores
civilizacionais que hoje perigam.
As questões da ecologia e da sustentabilidade, do património
cultural passado e da educação, e a produção artística contemporânea como a
produção do património cultural futuro, estiveram presentes em todas as
comunicações.
De facto, a importância da preservação da memória para a
construção de futuros humanistas terá sido a mais-valia retirada deste encontro
de pessoas em momento de partilha das matérias das suas investigações.
Será bom que este 1º congresso seja impulsionado para a
realização de muitos mais, com a periodicidade que a logística dos meios
possibilitar, porque o Mediterrâneo é o berço civilizacional onde residem as raízes
da nossa cultura. No início do século XXI surgiram alguns movimentos que vêm
esta água e estas margens como um todos rico na diversidade com urgência em ser
pacificado. Salientamos Love Difference,
uma iniciativa de Miguel Angelo Pistoleto (http://www.lovedifference.org/)
e a Fundación Tres Culturas (http://tresculturas.org/)
Ojós é, na realidade, um oásis, juntamente com Archena, Ulea,
Blanca e Ricote. Mas metaforicamente também o é, neste tempo de conflitos
ambientais e politicos de toda espécie. Oásis onde o pensamento sobre Natureza,
Paisagem e Mediterrâneo são o fator aglutinador de concórdias entre diferentes
pontos de vistas. É este o valor maior da Arte.
Na Natureza os territórios, as fronteiras e os limites são elementos
de discórdias. Mas as paisagens são a perceção global do todo, o entendimento
do outro, porque aquilo que espirito abarca nunca possui fronteiras geográficas
nem limites.
Aguardamos os próximos congressos.
Ilídio Salteiro, 2018.
23/05/2018
22/05/2018
21/05/2018
20/05/2018
Arquipélagos e Constelações, Ilha 1
Ilídio Salteiro, Ilha 1, 2013. Óleo sobre tela, 27 x 36 cm
ARQUIPÉLAGOS
E CONSTELAÇÕES
ILÍDIO SALTEIRO
Arquipélagos
e Constelações, reúne um conjunto
diversificado de «quadros» que integram séries, muito numerosas e mais ou menos
prolongadas no tempo, produzidas entre 2006 e 2018.
Nesta seleção podemos percecionar um fio condutor em
cada um, que acaba por ser elo de união com muitos outros. Este fio condutor corresponde
a entendimentos estéticos de diversa índole sobre as formas, a iconografia, o espaço
e a luz, e sobre a geografia e a política. Nele vão-se problematizando e discutindo
as questões que a pintura e a arte levantam, sobre a matéria e a natureza, através
da linguagem plástica e pictórica, concretizadas em «quadros», sistemática e exaustivamente.
A Pintura é uma ação do pensamento sobre a matéria! É um processo de
pensamento fundamentado nos modos de rever e refazer o mundo transformando as
matérias, físicas e conceptuais, que o compõem. A Pintura refaz, reorganiza,
recompõe, reordena e enfatiza as matérias universais, conhecidas ou desconhecidas
(Salteiro, O Centro do Mundo, 2013, p. 12).
Cada obra acaba por ser disso testemunho, um
testemunho que nos coloca perante as anatomias do pensamento humano. Arquipélagos
e Constelações, o título dado a esta reunião de «quadros», corresponde a
conceitos equiparáveis pela união na diversidade e pelos elos endógenos de cada
elemento face aos outros e ao todo.
Estas vinte pinturas são fatores de ligação de
pensamentos particulares a um outro pensamento universal, que no tempo presente
apenas será abarcável, no seu todo, pela vivência da arte e pelo processo intimista
da feitura desta.
Ilídio Salteiro (1953), é artista-plástico pintor, investigador e professor de pintura na
Faculdade de Belas-Artes da Universidade de Lisboa. Expõe regularmente desde
1979, participando na LIS’81-2ª Bienal de Desenho em 1981 e na III Exposição da
Fundação Calouste Gulbenkian em 1986. Está representado na Coleção Culturgest e
em outras coleções públicas e privadas. Realizou trinta e duas exposições
individuais, das quais se destacam O
Centro do Mundo no Museu Militar de Lisboa em 2013, Faróis e Tempestades na galeria da FBAUL e Uma Viagem na Minha Terra no Museu de Lanifícios na Covilhã em
2018. Participa desde os anos 80 em diversos projetos de curadoria e de
intervenção social, cultural e artística.
URL:
04/04/2018
06/02/2018
14/01/2018
Prospeção
Prospeção
Por Ilídio Salteiro
… a ilha está cheia de ruídos sonoros, de sons e de músicas
suaves que agradam e não fazem mal. Às vezes, mil instrumentos ressoam-me aos
ouvidos; outras vezes, são vozes tão doces que, se estou acordado depois de um
sono prolongado, me tornam a adormecer; então, em sonhos, parece-me que as
nuvens se abrem e vejo riquezas sem conta que vão chover sobre mim; assim é
que, quando acordo anseio por sonhar outra vez…. (Shakespeare, Tempestade)
A Pintura faz-se do ver e do partilhar. Dito deste modo, a
Pintura é apenas visão, versão, aparição, desvendamento ou descoberta. E o
pintor é aquele que a dá a ver, que a põe a descoberto e a partilha aos outros!
Consideramos a Pintura como aquilo que ─ contrariamente ao
que “alguns” pensam e argumentam hoje sobre arte ─ cura, revoluciona, rompe e
corta! Encaramo-la como aquilo que não pode ser reduzido a coisa cenográfica,
temporária! Nem ela mesma como objeto, nem o lento processo de investigação que
a originou, nem o arriscado processo de prospeção sucessiva que envolve, desde
que não estejamos a falar de um mero exercício de habilidades tecnológicas ou
outras. É, acima de tudo a formalização de pensamento vivo, humanista, que
reforça a força da esperança que permanece depois de tudo findar ─ com
reinícios constantes.
O conjunto de óleos e acrílicos sobre tela, composto por
paisagens e territórios povoados com sinais de vida, reunido neste livro sob a
titulação de Faróis e Tempestades, corresponde a uma seleção de treze obras
realizadas durante 2017 em torno de três eixos conceptuais definidos por livro
antigo, coleção e biblioteca. Estes “eixos” têm de comum o facto de nos
oferecerem possibilidades de ordenação do caótico, do confuso ou do
movimentado, ou simplesmente de tudo aquilo que se encontra sujeito a eternas
mudanças. Dominam as tempestades (Shakespeare s.d.).
A génese da civilização pré-diluviana em Babel, numa torre
única e universal, no Génesis (Crumb 2009), marca o início mítico de uma
cultura ocidental, onde o desejo de globalização e de centralismo, revelando-se
ser desmesurado, conduz a civilização para a multiculturalidade universal que
conhecemos. Esta ideia de Babel foi o ponto de partida destas obras, entendida
como ascensão e queda, como uma força globalizante em confronto com a
diversidade, ou seja, em confronto com as grandes dicotomias que vão tecendo o
nosso quotidiano. Uma ideia de Babel como arquitetura numa paisagem com
capacidade para simultaneamente agregar e disseminar, tal qual a linha de água
e o ritmo das marés junto à costa, umas vezes com grandes amplitudes e outras
com amplitudes mínimas. Uma ideia que nos conduziu naturalmente em viagens por
paisagens mentais de territórios nunca vistos, terras incógnitas, disponíveis
para as múltiplas descobertas.
Adquirindo corpo a ideia de ilha, de costa, de maré ─ de
linha entre solido e liquido. Uma linha determinante para o desenho de ilhas
aparecidas, ilhas de terra sem nome, longínquas, como aquela que Trezenzónio,
um monge galego, avistou do alto da torre de Hércules na Coruña no século VIII
e descreveu como sendo a Grande Ilha do Solstício. Uma ilha desenhada no
horizonte pelos raios do sol nascente, com um templo-torre, dedicado a Santa
Tecla. Uma imagem de um lugar distante, uma ilha paraíso onde tudo é perfeição
e harmonia e onde não existe tempo (Lucas, 1991).
Partilhamos estas palavras sobre algum do pensamento que
acompanhou a execução destas pinturas, íntima e silenciosamente, prospetando
naqueles passados assinaláveis e apenas aparentemente longínquos ─ Babel,
Grande Ilha do Solstício e Tempestade ─ os caminhos que todos nós vamos
percorrendo hoje, como descobridores do futuro, curando a sociedade da doença
da incivilidade, revolucionando paradigmas, rompendo preconceitos e cortando e colando
as boas coisas em códigos renovados e atualizados.
Referências
Lucas, Maria Clara de Almeida (1991). “Insula Solistitionis:
uma ilha iniciática”. In Yvette Centeno e Lima de Freitas, A simbólica do
espaço: cidades, ilhas, jardins. Lisboa: Estampa, pp. 73-85.
Crumb, Robert (2009), The Book of Genesis, Nova Iorque: W.W.
Norton &Company Ltd.
Shakespeare, William (s.d.). A Tempestade. Porto: Lelo &
Irmão Editores.
13/01/2018
Mundus novus: algumas cartas para Ilídio Salteiro
Por João Paulo Queiroz
Fig.
1. Ilídio Salteiro, Babel
(2),
2017. Óleo sobre tela, 150 cm x 200 cm. Coleção B.E
Neste texto far-se-á uma digressão pela obra plástica do pintor português Ilídio Salteiro. Parte-se do tema global do território, da viagem, da ilha e da utopia, para se relacionar os significantes materiais com os significados imateriais. Enquadra-se a pesquisa do seu último ano de trabalho nas problemáticas mais amplas como o tema do multiculturalismo ou da sustentabilidade. Também a narratividade, os discursos do nosso tempo são colocados como marcos de um questionamento plástico enraizado num percurso com várias décadas. Os livros, alguns livros, algumas folhas contêm pensamentos que o pintor revela como numa visão de um navegador seiscentista.
1. O Pintor Ilídio Salteiro
Ilídio Salteiro nasceu em 1953, em Alpedriz, Portugal.
Formou-se em pintura na então Escola Superior de Belas Artes de Lisboa,
prosseguindo depois o seu percurso formativo que inclui o mestrado e o
doutoramento, sendo hoje professor de pintura na agora Faculdade de Belas-Artes
da Universidade de Lisboa. Expõe desde 1979, com uma presença constante no
panorama artístico português. Sobressai a exposição “o centro do mundo” no
Museu Militar de Lisboa, em 2013 (Queiroz, 2013) (Figura 1).
Salteiro é contemporâneo de uma geração de artistas
portugueses que estão na transição entre uma neo figuração “pós pop” e uma
expressividade influenciada pela movida latina dos anos 80 - das novas
arquitecturas pós-modernistas (Itália, Reino Unido, França, Portugal), ao
“regresso à pintura”, com movimentos espontâneos como a trans-vanguardia, ou o
neo-expressionismo oitentista. Em pano de fundo, um otimismo gerado pela queda
das ditaduras ibéricas e pela integração europeia. Tudo isto se traduziu, em
Portugal, numa figuração expansiva,
identitária, disruptiva, onde
figuras humanas rompem paredes e arames,
com elementos figurativos icónicos, revisitando os clássicos com novas
espessuras de tinta e novos contrastes. Ao mesmo tempo as dimensões das telas
ampliam-se e as matérias ganham peso e textura, conduzem a descobertas
significantes. A pintura deseja-se um “Corpo sem Órgãos”, aprendem-se lições de
Deleuze, Bachelard, Derrida. As porosidades tornam-se significativas,
retomam-se narrativas na forma discursiva. Abrem-se aos artistas perspectivas
de mercado, com novas Feiras internacionais de arte, novas Galerias, novas Coleções, novos Museus (como o CAM, o
Museu de Serralves, o renovado Museu do Chiado). Em 1984, com Orwell (2007)
mais ou menos distante, lançam-se os primeiros computadores pessoais. O “muro”
de Pink Floyd cai, na realidade, em Berlim, em 1989. O mundo torna-se global. A
pintura sai de prisões ideológicas e decorativas, caminha-se para um novo
circuito de turismo rápido. Há sempre espaço para novos pensamentos plásticos.
Fig.
2. Ilídio Salteiro, Babel
(3),
2017. Óleo sobre tela, 70 cm x 90 cm.
Fig.
3. Ilídio Salteiro, Faróis
e Tempestades
(22), 2017. Óleo sobre tela, 80 cm x 60 cm.
2. Uma respiração feita de musgo
Das vivências no campo, da aldeia onde Salteiro nasceu,
alguns jardins, alguns lameiros, alguns riachos. As pedras que se sonham
montanhas na imaginação dos pequeninos. A respiração dos pinheiros, o rumor das
estradas, a deslocação lenta das nuvens. As brincadeiras de uma criança, que se
tornaram o centro de um mundo sonhado, onírico, sem tamanho. As casas, as
aberturas, os habitantes, as pontes, os caminhos, as primaveras e o sentir o
dilatar dos dias em direção ao verão e ao sul. De todas estas vivências se
pressente um Universo de criação (Figura 2) aqui na terra.
Do musgo das pedras, numeram-se construções, planos,
traçam-se mapas, rotas, imaginam-se ilhas, ora vazias, ora com seres
liliputianos, que escondidos desapareceram. Aguarda-se a maré que faz a vida
pequenina respirar, na ria de Faro, onde também se explora a pequenez do agir e
do imaginar, e as coisas pequenas se fazem grandes (Figura 3). Assim se fazem
os pintores. O olhar que brinca com o mundo é o mesmo que constrói o mundo.
Sobre o ribeiro imagina-se uma ponte. Sobre a ponte a estrada. Ao longe a
montanha. Aqui perto as areias húmidas pela maré. Estas águas sobem e descem
numa pulsação lunar. Este é um limo
vivo, verdescente, que se apodrece e cresce.
Fig.
5. Ilídio Salteiro, Faróis
e Tempestades
(26), 2017. Óleo sobre tela, 80 cm x 60 cm.
3. As casas vazias
Por aqui, nesta e naquela pintura, uma casa lisa, ranhuras
por onde se pode espreitar o horizonte, com aberturas por onde se pode
espreitar o seu interior. Lá
dentro, caixas, salas vazias, onde podemos habitar (Figura 4,
Figura 5). Estas construções são
nossas, abertas para nós, como Giotto,
que nos frescos de Pádua no-las abriu. Brincava com a perspectiva,
inventava escadas, pórticos, alpendres,
mezzanines, púlpitos, espaços nobres, explicados,
mas quase sempre impossíveis. Nós que estamos cá fora sabemos que a casa
pode ser nossa, porque já lá habitamos,
ou porque para lá as poderemos explorar. Esta arquitetura pintada, é uma arquitetura sonhada, como a de Palladio, como as suas arcadas do centro de
Vicenza, ou a sua Villa Rotonda. Lidos
os 10 livros de arquitetura de Vitrúvio
que explicam as colunas, as escadas, os aparelhos da parede, os aquedutos, as
divisões de uma casa, as considerações sobre a pureza das águas e as
influências do clima. As águas frias e quentes, os frescos e rebocos, os
mosaicos e pinturas, os telhados em águas e uma estrutura virtuosa. Toda a arquitetura se
basearia nos três princípios da "utilitas" (utilidade), "venustas"
(beleza) e "firmitas" (solidez). Três princípios com que a pintura
ilude e brinca: não é útil, não é firme, e ilude a beleza do mundo.
Fig.
6. Ilídio Salteiro, Faróis
e Tempestades
(20), 2017. Óleo sobre tela, 100 cm x 70 cm.
3. Os rectângulos
Giotto propõe a “perspectiva naturalis” e assim inventa um
personagem do lado de fora do quadro: o observador, eu e tu. É a pensar no que
o observador vê que as coisas se arrumam, se pintam, se sobrepõem, se podem
espreitar. Pendurados destes rebordos, destes retângulos, espreitamos lá para
dentro e vemos. São pinturas que mostram a terra, as ilhas e os rios (Figura 6).
Mostram-se coisas ora pequenas, ora grandes, ora são matéria tinta, matéria
visão, matéria coisa. Apresentam-nos o nosso interior, parecendo ora dentro,
ora fora, de ti, que espreitas.
É uma terra de bons selvagens, que se escondem nas torres,
perdidos por faróis antigos, encantados pelos ventos de Ariel, de A Tempestade.
Os selvagens destes novos mundos pintam-se com urucum e terra de siena, com
azul prússia e terras da úmbria (Rousseau, 1959).
Fig.
7. Ilídio Salteiro, Faróis
e Tempestades
(5), 2017. Acrílico sobre tela, 70 cm x 90 cm.
4. As visões ao preço da lepra
Em entrevista (dezembro 2017) Ilídio Salteiro fala-me das
visões de um monge no cabo da Finisterra, na Torre de Hércules. Que vira o
paraíso para oeste, numa ilha verde, e para lá tinha ido na condição de ser só
por sete anos. Era uma ilha perfeita, um paraíso testemunhado aos olhos do
clérigo. Tão doce era a visão e a sensação, que findo o prazo, o monge quis
ficar. O preço a pagar foi a lepra, o apodrecimento lento de um corpo no
paraíso. A lenta maré que se esvazia, e se renova em sofrimento diário, agora
Prometeu.
As visões do monge são mostradas, uma a uma, ao longo desta
série. Ora com pressa, nos desenhos, ora com vagar e demora, na pasta das
pinturas. O monge contempla o paraíso
pagando um preço carnal, preço que é também pago por todos os vivos nas terras
verdes e húmidas (Figura 7).
5. As viagens de
Rafael Hitlodeu
Eis uma viagem, a do primeiro homem, e a do último homem.
Daqui, talvez, o veterano marinheiro Americo Vespucio (1992), que descreve a Lorenzo di Medici uma carta sobre
a descoberta de mundos novos: "…. na frota a expensas deste Sereníssimo
rei de Portugal, corremos e descobrimos, as quais terras nos deve ser permitido
chamar Novo Mundo, … a maior parte dizem que, além da equinocial, para a banda
do meio-dia, não existia terra continental, mas somente o mar Atlântico, e os
que afirmaram haver ai terra negaram que fosse habitada de racionais. Mas o ser
esta opinião falsa, e a verdade o contrário, se provou nesta minha última
viagem…".
Ora acompanhou sempre Américo Vespuccio um português, Rafael
Hitlodeu, que depois de anos deixado à sua sorte, terá uma conversa com Tomás
Moro. Uma vez publicada, mudará o mundo. Ilha de lugar nenhum, a primeira
"Utopia". Sítio de aberturas, pontos de vista para o exterior. Ou, de
aberturas para um interior. Todo um território pensado, representado,
cartografado. É um paraíso humano, lugar instável, área de passagem entre
mundos, construções sem interior nem exterior, lugares para olhar como visões.
De livros, de mapas, de terrenos, terras húmidas onde a natureza respira, onde
a linha da maré agita os vivos, os que já foram, os que virão a ser (Figura 7).
Fig.
8. Ilídio Salteiro, Faróis e Tempestades (24), 2017. Acrílico sobre tela,
70 cm x 90 cm.
6. Discussão
Esta é
uma viagem adentrada de óleos, de cores azuis cobalto e terras argilosas e
túrgidas de limo (Figura 8). A viagem é infinita, pelo mundo fora, mundo mais real que o real “pois
naqueles meridianos encontrei terra continental habitada de mais povos e
animais que a nossa Europa e a Ásia ou África, e os ares mais temperados e
amenos que em qualquer outra região conhecida conforme direi, tratando do que
vi ou ouvi digno de notar neste Novo Mundo, segundo se verá mais abaixo....” (Vespucio,
1992).
Ou podíamos estar na ilha de Próspero, aguardando entre
cogitações e livros, os náufragos que poderão ser mortos ou salvos. Entre Ariel
e Miranda, um engenho de vento e mar, uma Tempestade urdida. O pintor é
animalesco e serve para contar a história, como Caliban (Shakespeare) no-la vai
contando, um homúnculo cheio de terra, e sulfuroso. Já Próspero, essa mente da
ilha, não o vemos, apenas as suas manifestações temporais. E a ilha não existe,
não lugar: a Utopia contada a Tomás Moro pelo mesmo Rafael Hitlodeu.
De todos estes mundos novos no-los ilustra e traz Ilídio
Salteiro, um Caliban atarefado, sujo de tinta, mas com uma condição para nós: a
condição dos vivos.
Referências
Deleuze, G. & Guatari, F. (2010) O anti-Édipo: Capitalismo
e esquizofrenia 1. São Paulo: Editora 34. ISBN 978-85-7326-446-3.
Orwel, G. (2007) 1984. Lisboa: Antígona. ISBN: 9789726081890
Queiroz, João Paulo (2013) "Propostas para ‘o centro do mundo:’ as pinturas de Ilídio Salteiro" Revista :Estúdio. ISSN 1647-6158, e-ISSN 1647-7316. Vol. 4 (8) pp. 310-319.
Rousseau, Jean-Jacques, (1782), 2001. Rêveries du promeneur solitaire. Col. "Les Classiques de poche". Paris: Livre de Poche.
Shakespeare, de William (2001) A Tempestade. Lisboa: Campo das Letras. Isbn: 9789726104728
Vespucio, Americo (1992) "Mundus Novus." In Ribeiro, Darcy & Neto, Carlos. A fundação do Brasil: testemunhos 1500-1700. Petrópolis: Vozes, pp. 101-106.
Orwel, G. (2007) 1984. Lisboa: Antígona. ISBN: 9789726081890
Queiroz, João Paulo (2013) "Propostas para ‘o centro do mundo:’ as pinturas de Ilídio Salteiro" Revista :Estúdio. ISSN 1647-6158, e-ISSN 1647-7316. Vol. 4 (8) pp. 310-319.
Rousseau, Jean-Jacques, (1782), 2001. Rêveries du promeneur solitaire. Col. "Les Classiques de poche". Paris: Livre de Poche.
Shakespeare, de William (2001) A Tempestade. Lisboa: Campo das Letras. Isbn: 9789726104728
Vespucio, Americo (1992) "Mundus Novus." In Ribeiro, Darcy & Neto, Carlos. A fundação do Brasil: testemunhos 1500-1700. Petrópolis: Vozes, pp. 101-106.
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