29/12/2023

Centro do Mundo

Texto lido pelo autor, Ilídio Salteiro, sobre Arte e Pintura e sobre o projeto de Pintura intitulado o Centro do Mundo, apresentado e exposto em 2013 no Museu Militar de Lisboa.


 

30/06/2023

Sou pintor.

 


Se todo o ser humano é um artista isso significa que eu também sou artista: eu, o meu amigo e todos os nossos demais conTERRÂneos. Este facto deve-se à livre possibilidade de acessos e de direitos conquistados pelas sociedades democráticas durante a segunda metade do século XX. Uma conquista vislumbrada inicialmente por Marcel Duchamp, corporizada efetivamente por Joseph Beuys e vivida comumente nas sociedades pos-modernas e globalizantes atuais, onde a Arte convive com o lazer, a festa, o festival, o consumo, o mercado, a terapia, a pedagogia e com o conforto económico e social global: uma convivência fraterna com conceitos abertos de ambiente, natureza e vida.

Mas, para além desta minha qualidade de artista (ser humano), sou cada vez mais aquele que procura respostas construindo propostas através da Pintura: sou pintor!

Ilídio Salteiro, 2023


21/05/2023

Personagens Insustentáveis de António Garcia Lopez



 Personagens Insustentáveis de António Garcia Lopez

Em Personajes Insostenibles, temos uma exposição de António Garcia Lopez que traz para o debate no mundo da arte a relação entre estética e temáticas sociais, ambientais e artísticas. Verifica-se também, perante o seu modo de produção artística, que a colagem não é apenas uma tecnologia para realizar composições pictóricas. Nele, ela é um modo de reutilizar o manancial absolutamente excessivo de imagens que diariamente nos assediam com propostas de infindáveis produtos e de muito discutíveis modos de estar e ser. E também nos mostra, muito claramente, uma visão de um mundo construído em torne de uma sociedade híperconsumista, embriagada pelo consumo de futilidades e pateticamente aderente a todo um perigoso universo de efemeridades que colocam em risco a sociedade humanista de hoje que tanto nos custou a construir. Finalmente sentimos em toda a sua obra um forte apelo para que tenhamos uma atitude mais sustentável nos nossos atos.

São estes três pressupostos que têm sido o alimento essencial da obra de AGL nos últimos anos. Os anos em que nos conhecemos e nos quais estes temas foram motivo de conversas, debates informais, troca de opiniões e cumplicidades em projetos artísticos e curatorias, sempre que as circunstâncias dos momentos os propiciaram, nos espaços de muitas instituições entre Lisboa, Múrcia e Valencia.

Pode ser constatado nos trabalhos expostos que AGL aprofunda a sua perspetiva de visão para o mundo, continuando a exploração da estrutura compositiva do género do retrato materializado através da colagem que, revelando ter capacidade para subverter a tradição renascentista, também consegue realçar um seu modo dadaísta de ser, fazer e ver o estranho espaço que ocupamos no tempo presente (Freud, 1919).

O processo da colagem, tem sido o seu grande recurso desde 2000, contabilizando um grande número de exposições. É um processo de criação artística que resulta de uma rigorosa investigação em arte onde se referenciam ascendências artísticas, culturais e conceptuais de artistas como Josep Renau (1907-1982) ou Francisco Goya (1746-1828), nomeadamente a obra gráfica, dando continuidade a uma escola de pintura espanhola genuína quanto às suas características expressivas.

Como escreve AGL na nota de imprensa para esta exposição as suas colagens …son literalmente “re-collages” que pretenden componer y explicar el mundo que nos rodea, es un laboratorio para las ideas, un campo de batalla sin fin, la suma de estratos y capas de nuestra historia pero también de la “basuraleza” que hemos generado, una forma de reinventarse a partir de la propia experiencia, es en definitiva lo que ha venido haciendo la pintura a lo largo de toda su tradición y lo que la mantiene tan presente y tan viva en el resto de manifestaciones artísticas»…

Mas nestas obras, sob a designação de Personajes Insustentabiles, AGL quando utiliza a sua própria expressão pictórica como elemento de composição que sugere uma sensação de espaço expressionista e gestual ao serviço dos enquadramentos ou contextualizações de todo o conjunto, salienta um elemento pictórico novo: a textura como matéria. Sobre espaço vão sendo acumulados recortes de muitas imagens com outras posições e escalas, desempenhando o papel de protagonistas dos espaços e das narrativas como personagens ou atores do mundo contemporâneo. Um mundo onde o valor das coisas já não é determinado pelas dimensões humanistas, estéticas, culturais, antropológicas ou sociológicas, mas é apenas determinado pelo valor atribuído por um sistema regulado pelas leis da oferta e da procura: o dinheiro.

Antonio García López é um artista / pintor que desenvolve a sua atividade entre Múrcia e Valência, que deixa perceber na sua obra um conhecimento culto do classicismo hispânico e europeu sob o desígnio de uma visão sarcástica, mordaz, crítica e interventiva sobre a distopia da sociedade contemporânea globalizante e autocolonizadora. Isto corresponde a um modo de estar muito especial porque coexiste com o tempo da apologia do entretenimento e da efemeridade das coisas, dos atos e dos compromissos. Num tempo em que impera cada vez mais uma inteligência artificial neoimperial, governadora global de todos nós, a atitude estética do AGL torna-se relevante pela coragem do olhar, do ver e do decidir, sabendo fazer uso do pensamento humanista implicado na criação artística sem efeitos digitais fúteis.

Apela militantemente ao nosso entendimento em vez de apelar apenas ao olhar. As obras que nos apresenta são pensamentos materializados como se fossem primeiras páginas de muitos livros abertos prontos a serem partilhados com o outro, ao qual se exige que, para além desse olhar primeiro, use a sua aptidão para entender e fazer juízo sobre o seu próprio universo. Cada obra é por isso um médium com a função de promover mais pensamentos, mais ideias e mais opiniões, mais energia. Um médium feito com maestria do domínio das artes de fazer formas plásticas, e com acutilância critica dirigida para a paisagem sociológica que vivemos.

Em El Paracaidista (2020) temos uma composição protagonizada por um barrete vermelho a servir de paraquedas a um pedaço de um rosto de alguém que parece exprimir uma simpatia afável. Nesta obra somos levados a pensar nas estratégias subliminares que se artilham, através de apelos necessidades de consumo absurdas dos quais a figura do Pai Natal é uma delas, com o objetivo se submeter um território ou uma cultura a outras formas de colonialismo.

A facilidade com que obtemos imagens figurativas, abstratas, fantásticas, reais ou ficcionadas é estonteante. É igualmente estonteante a diversidade de meios existentes para que as obras feitas adquiram corpos diversos através de remediações sucessivas (David Bolter, 2000). Todas estas remediações possíveis nos arrastam para um tempo em que imagem e artes visuais se confundem com pintura. Momentos em que pintura se confundo com uma tecnologia, ou seja, momentos em que olhar o mundo não basta para o entender. Inteligência, raciocínio, opinião ou razão são recursos humanistas absolutamente indispensáveis para a sobrevivência universal.

O formalismo estruturante da sua obra, marcado culturalmente pelas raízes da sua formação, está bem sustentado com todos estes Personajes Insostenibles, intitulados de um modo limpido: el sostenible, el reciclado, los ecológicos, la última cima, alta resistência, los insectos, consumidores compulsivos, la criada ou Noé y su arca. Sustentabilidade, reciclagem, ecologia, consumo ou ameaça apocalíptica são os assuntos que hoje condicionam os nossos comportamentos mais básicos. Personagens construídas por colagens de um rigor expressionista que nos remete claramente para duas questões: a primeira será a colagem como primórdio essencial da Pintura a qual se concretiza apenas pela capacidade que os médiuns (seivas, resinas, óleos ou químicos) têm para colarem outras matérias (pigmentos, cor e textura) sobre muitos suportes (Salteiro, 2018). A segunda será a assunção da expressão visual do pensamento que, para se formalizar, recorre a todas as tecnologias disponíveis.

Mas a expressividade maior, plástica e conceptualmente, que se manifesta claramente nas obras de AGL advém da sua identidade de valenciano marcado pelas ricas manifestações tradicionais das Fallas. As Fallas são uma tradição com raízes medievais que celebram o equinócio da primavera através de queima de obras de pintura / escultura extremamente críticas da sociedade local regional nacional ou mundial, tendo como destino fazer uma grande fogueira com todas elas. Esta festividade anual serve para se queimarem os fantasmas de todos e de cada um, num momento partilhado coletivamente, com muitas interpretações críticas sobre a sociedade.

AGL usa o corte, a colagem, a sobreposição e o confronto, agrupando imagens coletadas em revistas e jornais em composições imbuídas de uma evidente teatralidade fotográfica e televisiva. Depois articula espaços compositivos onde se encenam narrativas comuns do dia a dia, transformando coisas e personagens em marionetas de um ecossistema que atrofia e desvaloriza cada vez mais os pensamentos livres.

Vale a pena ver, refletir e acompanhar os trabalhos de Antonio Garcia López, porque eles demarcam-se da irresistível tendência para considerar a arte contemporânea com tendência global alinhada.

Ilídio Salteiro, 2023

Algumas referências: 

David Bolter, G. R. (2000). Remediation, understanding new media. Cambridge Massachusetts: The MIT Press.

Freud, S. (1919). O Estranho. Obtido de https://conteudos.files.wordpress.com/2016/02/ensaio-o-estranho_freud.pdf

Salteiro, I. (Janeiro Março de 2018). Antonio García López : colagem e politica como processo de pintura. Estúdio, 9(21), pp. 60-66. Obtido de http://hdl.handle.net/10451/38335

Mundo Novo & Natura Naturans

Exposição de Ilídio Salteiro e Dora Iva Rita no Salão da SNBA, Sociedade Nacional de Belas Artes em  Lisboa, de 6 de fevereiro a 2 de março ...