10/09/2015

João Castro Silva «Draperies» - Sala do Veado, Lisboa

Exposição de João Castro Silva, Draperies, na Sala do Veado



Ensaios do Ver

Panos ao vento, tentativas de redenção. Sobrevidas. Migrantes.
Barcos manhosos, roupas molhadas, rasgadas. Subvidas. Migrantes.
As tábuas flutuam, as roupas encharcam-se, as vidas submergem. Migrantes.
As tábuas unem-se em frágeis jangadas em águas imprevisíveis. Migrantes.




João Castro Silva, Draperies, 2015
Sala do Veado até 27 de Setembro de 2015
Rua da Escola Politécnica, 56 / 58, Lisboa

A migração das formas por entre matérias permite imprevistas trocas semânticas. A migração das ideias por entre as formas elucida os espíritos. Interrogamo-nos sobre a vida como um todo maior do que ela é. A arte traz-nos essa outra realidade onde pode confluir tudo o resto que desejarmos ter como referente. Sem limites ou preconceitos, deixemo-nos migrar para a obra com tudo o que somos.
João Castro Silva consegue incorporar na madeira a ductilidade da água, a leveza do ar, o peso da pedra, a uma estranha espacialidade de luz.
A matéria-prima é madeira de árvores que vencem o nosso tempo, podendo viver na casa dos milhares de anos. A matéria-prima advém de entes de metabolismo mais lento do que o nosso, de verticalidade extraordinária dos seus 70 m de envergadura, com folhas que lembra vegetações de épocas muito mais antigas. A matéria-prima tem um odor agradável e é rosada como a pele do escultor, leve e com uma densidade de 300 a 420 Kg por m3. A Criptoméria-japónica, um tipo de cipreste oriundo da China ou Japão, é hoje endémica em muitos outros locais do mundo, como nos Açores, onde se sobrepôs à floresta autóctone da Laurissilva. É uma forte e resistente, daí o ser uma árvore de culto, envolvendo os santuários e os templos nipónicos.
A madeira é, das matérias-primas da escultura, aquela que mais próxima está da natureza humana. Ao deixar de ser árvore e passar a ser obra de outro arbítrio, transmuta-se e alcança uma outra natureza, aquela que a Humanidade almeja ­ a da Arte ou a do espírito, as que não têm matéria e se cumprem através da matéria do Outro. O escultor dá-lhe outra natureza, não desprezando, no entanto, tudo o que carrega desde a sua origem, por mais desconhecidos que sejam os seus percursos.
O valor semântico de cada peça exposta é tão expressivo, eloquente e diverso, que remete o observador para uma transcendência, transformando-o em contemplador. E também modifica o espaço. Sacraliza-o. O balancear, parece existir e ser permanente, comprometendo o olhar e a preceção do ar em movimento.
As cisões entre as tábuas marcam o todo como veias ou como sulcos de navalha. Ou como um simples padrão riscado de roupagem que já foi vestida. As ideias irrompem à medida que os olhos afagam as superfícies. A delicada leveza das peças e da instalação surpreendem por contrariarem o próprio conceito de matéria esculpida. O têxtil sobrepõe-se-lhe. A ideia sobrepõe-se à matéria. De facto as peças parecem levitar a cima do chão com a ajuda do ar. Ao circular por entre elas percebemos a sua verdadeira natureza, mas aí já a nossa perceção nos encantou. Jogar com estes limites e saber não cair em redundâncias estéticas redutoras ou híper habilidades, demonstra uma criação e saber fazer de mestre. Por instantes vem-nos à memória o assombramento dos Abakans de Magdalena Abakanowicz (1930), os vultos suspensos dos Pronomes de Ana Vieira (1940), a fragilidade cenográfica das instalações de Kaarina Kaikkonen (1952). Também existe o travo de algum acampamento improvisado de migrantes ou de vivências já desusadas da urbanidade mediterrânica.
As tapeçarias alvas, dependuradas em linhas vagas que unem vão a vão e recortam o espaço, são cortinas, separações que escondem do olhar para além de si. Podem ser mortalhas, sudários, mantéis. Podem ser tudo aonde a imaginação ilusória nos transporte. Podem referenciar-se como absurdos ou fascínios, grandes utopias ou pequenas verdades.
Mas são esculturas relevadas em madeira. São trinta e nove peças com escala humana, variando entre os 70 e os 100 cm em altura ou largura, em que o espessamento não ultrapassa os 7 cm. O escultor primeiro une tábuas isoladas, depois talha-as como se fosse santeiro tradicional vestindo alguma figura mística. Castro Silva é também o imaginário mas já só cria abstrações, ou os panejamentos que cobririam hipotéticas figuras. Fá-lo com ferramentas semelhantes mas mais rápidas, numa associação da energia própria ao escultor com a que a eletricidade lhe faculta. O polimento final é também semelhante ao que o imaginário dá à sua imagem e é do domínio da pintura. A pintura encobre a matéria e obriga-a a fingir-se mármore, pele, aumentando o protagonismo semântico das obras.
As cortinas encobrem o que se pretende mais íntimo. A vida é comunitária. Por mais que pareça contraditório. O tecido cobre e mancha-se. A água retira essas marcas, o ar seca-as. Como animal que lambe as feridas para as sarar. A arte sara. É curativa como Louise Bourgeoise (1911-2010) percebeu.
Estamos no ano de 2015 da era de Cristo. Os náufragos do Mediterrâneo são deuses adormecidos como nós. Cada um é um nós. A dor é sempre coletiva, assim como o medo ou a gratidão. A fuga pela sobrevivência é comum a todo o ser vivo. Quando se é migrante procura-se porto seguro junto de outros mais imparciais. Migrar de um para outro é reconhecermo-lo em nós. Civilidade é perceber-se isso e construir sociedades que se cumpram nesse desígnio.
A acuidade percetiva possibilita sentir o outro ‑ a dor, o desejo, o júbilo. A mesma perceção que possibilita que sejamos amantes da Arte, porque ao amar o Outro é para nós que nos dirigimos. Por isto a Arte é o sustentáculo da civilidade e por isso é tão importante saber senti-la, reconhece-la e vê-la. E se possível exercita-la, como João Castro Silva nos sugere.

A exposição instalativa Draperies do escultor João Castro Silva (1966) está a decorrer em Lisboa, na Sala do Veado do Museu de História Natural e da Ciência, até ao dia 27 de setembro de 2015. O museu fica ao Príncipe Real, na Rua da Escola Politécnica, junto ao Jardim Botânico, onde pode passear sob a sombra de uma Criptoméria-japónica. Silenciosamente consigo, entre pela porta da antiga faculdade das Ciências da Universidade de Lisboa e migre pela instalação. Construa o seu barco.

Dora Iva Rita
Lisboa, Setembro de 2015

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