Viva Arte Viva, o título da 57ª Bienal de Veneza (2017), foi encontrado
por Catherine Marcel, a curadora desta grande exposição, a qual tem vindo
a desenvolver trabalho e eventos expositivos que valorizam e colocam o
trabalho do artista num campo conceptual de prospecção (Christine Macel, Time
Taken: Time at Work in the Work of Art, 2008). Terá sido desta
consciencialização que foi criado o departamento Création contemporaine et
prospective e se inaugurou o Espace 315-Galerie Sud no Centro George
Pompidou.
Este ponto de vista, levando a que se considere o universo do artista
como um universo de sondagem, pesquisa e estudo preliminar essencial para se
acharem as «soluções plásticas» que o humanismo carece, não tem sido assunto
muito corroborado pelos agentes do mundo da arte atual, devido à dimensão de
assunto inconveniente que ele acarreta. Inconveniente porque valoriza mais o
processo que conduziu à obra do que a obra em si mesma. Esta corre o risco de
ser retirada do campo do endeusamento pra onde foi transportada à custa de
muitos argumentos e retóricas periféricas, alheadas das energias e da verdade
dos factos. No entanto, apesar disso, este pensamento terá sido plebiscitado
positivamente pelo conselho de administração da Bienal. O seu presidente Paolo
Barata refere-se ao facto de ter convidado Catherine Macel para a organização
da 57ª edição porque o seu trabalho tem permitido «d'observer et d'identifier
de nouvelles énergies venues du monde entier». Também Serge Lasvignes, o
presidente do Centro Pompidou, diz que Christine Macel «défend une création
sans compromis, accompagne les artistes dans leurs tentatives les plus
prospectives, ne s’effraie pas face aux formes neuves d’une création en train
de s’inventer et de trouver ses voies. »
Viva Arte Viva será, como diz Catherine Marcel, uma exposição feita com
artistas, por artistas e para artistas, privilegiando a pesquisa, o estudo, a
motivação, a emoção, a intuição, que conduz o artista diariamente ao seu
atelier, ao seu mundo, à sua vida. O atelier é o espaço onde a obra, entre o
nascer, o crescer e o morrer, vive e permanece viva. Depois sairá para o
mundo exterior afastada de quem a fez, adotada por muitos outros nas
infindáveis paredes de galerias, museus, arquivos e acervos onde permanecem
eternamente estáticas e mortas. Mas renascerão sempre que qualquer visitante em
qualquer momento se detenha em frente delas. Na realidade a vida da obra foi o
tempo passado no atelier, entre o pensamento e a acção do artista. Depois será
outro assunto, outro universo.
Quando em 1985 estava fazer o mestrado em História da Arte na
Universidade Nova de Lisboa, com cerca de 15 colegas mestrandos cujas formações
académicas vinham das áreas da História, da Filosofia, da Arquitectura e da
Arqueologia, sendo eu o único da área das Belas-Artes /Pintura, passava-se a
mensagem de que os artistas não deveriam saber exprimir e manifestar as suas
pensamentos, processos e ideias na análise das obras de arte históricas porque
o pensamento artístico não era teria expressão oral nem escrita, nem era
científico. Cimentava-se um estereótipo passando-se uma ideia, ancorada na
imagem excêntrica do artista, de que o seu universo mental é irrelevante,
devendo mesmo adotar o perfil de ser sensível mas ignorante, ingênuo, esperto
ou oportuno, enfim instintivo. O que ele disser será imperceptível, o que fizer
será excêntrico, o que escrever será de somenos importância. Neste contexto
completei o mestrado com sucesso porque decidi temporariamente experimentar a
investigação histórica. Para isso foi decisiva a opção por fazer investigação e
uma tese sobre a pintura do século XVI que, aos olhos dos coordenadores do
mestrado, era assunto bastante longínquo do universo artística atual, que nunca
abandonei, e muito afim com os cânones do historiador de arte.
Muitos consideram os universos dos artistas muito estranhos, por
infringirem normas comportamentais, por pensarem em não-funcionalidades, mas
sobretudo por fazerem coisas nunca antes vistas, fora do centro.
Se todos queremos estar atualizados de acordo com os modelos ditados
pela nossa época, como se pode entender que alguns não tenham esse objetivo?
Como se pode entender que alguém abdique dos paradigmas comportamentais e
sociais impostos pela cultura média (mas universal) do efémero e o periódico?
Porque haverá alguém que, sozinho no seu universo, procura, investiga e estuda
as formas do pensamento até as transformar em forma? Em arte? Coisa difícil de
entender! Mesmo incompreensível quando não se considera a parte de dentro.
Trabalhar arduamente sobre nada, sobre uma coisa que não serve para
nada, para o mundo materialista, social, política e maioritariamente insensível
que nos circunda, é de difícil entendimento. Por isso o artista é visto como um
ser socialmente descentrado, como excêntrico, fora do centro, fora da norma.
Porém as coisas que ele concebe, depois de saírem de si, entram rapidamente na
norma, ocupando todos os pontos de fuga da nossa atenção coletiva.
Todos fomos educados e habituados a ver as obras do lado de fora do
atelier, do lado de fora do universo do artista, inseridas nos museus e nas
galerias, nos livros e em outras publicações. Este modo de ver tem sido o que
tem feito a história da arte, inventariando, acreditando, avaliando e
legitimando. Trata-se de uma espécie de trabalho de arqueologia das coisas que
o homem fez e produziu, decalcando e interpretando as realidades
envolventes e inventando soluções, excelentemente argumentadas na retórica das
diversas áreas científicas que as coletaram. Estamos por isso diante da obra
depois de feita, velando ou esquecendo o universo do artista.
Quando falamos do universo do artista não nos referimos à sua biografia
e respectivas patologias, mais ou menos expressas entre duas datas, marcando o
início e o fim de uma vida dedicada a um feito artístico.
Referimo-nos sim ao processo de trabalho, ao pensamento despendido na
concretização do seu projecto artístico, às estratégias, metodologias e
opiniões que o levaram a tomar as opções e as obras. Referimo-nos ao longo
período que vai entre a ideia e a sua realização. Referimo-nos ao lado de
dentro, ao interior do atelier, como testemunha diária das emoções advindas da
criação da arte. Referimo-nos ao nascimento da obra em atelier e à vida plena
desta, imbuída de imprevistos debaixo a orientação e domínio da mente do
artista.
Referimo-nos ainda ao pensamento à flor da pele, à sensibilidade, à
cultura, ao humanismo apenas experienciável pela obra de arte, aquela sobre que
muitos se questionam e duvidam da sua função primordial de consolidação
da dimensão homem, remetendo-a para acantonamentos acessórios que
justificam orçamentos políticos irrisórios.
Por isto tudo congratulo-me com os propósitos desta bienal, porque
podemos encontrar nela pressupostos conceptuais que valorizam a missão do
artista como veículo promotor da matéria humanista que o mundo carece. O
atelier do artista é um centro de prospecção, de hipóteses, de interrogações
resultantes, não de encomendas, mas de universos de sensibilidade, onde
se fazem sínteses e experienciam vivências concretizadas em obras / propostas
que viabilizam o homem no mundo.
Neste evento, e como ponto essencial e fulcral sublinho apenas Artist’s
Practice, um projecto disponível na Internet, constituído por pequenos vídeos
onde cada artista se refere ao seu processo de trabalho. E quanto mais
não fosse, apenas com este projecto, a dimensão conceptual desta bienal
encontrar-se-ia perfeitamente suportada.
Não irei referir os cento e vinte artistas participantes, nem a nenhuma
das suas obras em particular porque esse trabalho não me compete. Competirá a
outros certamente no futuro.
Desejo simplesmente justificar o meu agrado por todas as Bienais de
Veneza do século XXI e em particular esta 57ª Edição. Quando visito a Bienal de
Veneza mais importante do que salientar um ou outro artista será perceber o
conjunto de todas as participações em função do enquadramento estruturante
encontrado e estabelecido, ao modo de congressos com os seus congressistas e as
suas audiências presentes, participantes, ativas. Um momento de reflexão global
sobre a Vida, sobre a Arte.
Talvez por tudo isto se sintam opiniões mais ou menos críticas que
circulam em sites e blogs. Algumas manifestações de desconforto perante uma
exposição que privilegia o universo dos artistas. O universo dos artistas,
plural, transversal e interdisciplinar, que não se enquadra num único ramo do
conhecimento. Enquadra-se em todos!
Todos os artistas devem sentir-se representados nesta bienal, porque o
que se valoriza nela é seu universo e não apenas o universo do artista X, do Y
ou do Z. O que se deve retirar dela é sobretudo perceber a pertinência na
atualidade do universo que os artistas bem conhecem, como local de
experimentação e desenho do mundo futuro, através de representações,
revisitações e reapropriações de mundos passados. Um espaço de renovação
permanente onde o artista faz todas as obras do seu «museu» como o colecionador
de livros antigos que na impossibilidade de os possuir, os escreve! (Walter
Benjamim, Desempacotando a Minha Biblioteca, 1931).
O artista atreve-se a tanto, com medos e alegrias, com insucessos e
triunfos.